Um retrato inicial da maternidade negra em Aracaju

Por Henrique Maynart

Maternidade e negritude se espremem pelo calendário nas ancas de 2018. Uma lei, áurea, sobre o povo, negro, em vestes de abolição. Pressionada por setores interessados em expandir o mercado interno brasileiro, no dia 13 de maio de 1888 a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, que acabava oficialmente a escravidão da população, negra.  Há 130 anos da rubrica real, a data cai de paraquedas no segundo domingo de maio, data em que é comemorado o dia das mães no Brasil. Na encruzilhada das datas encontramos as mulheres, mães, pretas, sergipanas, suas vidas, afetos e dissabores.

Ana Lúcia do Carmo. Jornalista, mãe do Joaquim

O dia das mães é data boa pro comércio, anúncio e tudo mais. O contingente de negros e pardos representa 66% da população apenas em Aracaju, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, as mulheres representam mais da metade da população. Dados à mesa, o questionamento: as mães negras se sentem representadas nas propagandas comemorativas do dia das mães? “NÃO MESMOOOO”, grita em Caps Lock a jornalista Ana Lúcia do Carmo, 24 anos, mãe do Joaquim. “O comércio mostra mulheres de meia idade brancas, crianças igualmente brancas, claramente classe média alta, cabelos lisos, olhos claros e afins, como também pela maternidade que é pintada na TV e pelo comércio.”

Subrepresentadas no anúncio, mais que presentes na faixa de pobreza. Santa Maria, Japãozinho, Porto Dantas, Lamarão e Capucho. Os dados do IBGE apontam que os cinco bairros de Aracaju que possuem mais de 75% de sua população autodeclarada negra e parda são os mesmos que apresentam renda familiar média abaixo de R$ 1 mil. De acordo com dados do Cadastro Único da Secretaria Municipal de Assistência Social (Semasc), somente no Santa Maria há 11.812 mulheres que se declararam negras e pardas. Decilene Santos Santana é uma delas: trabalhadora doméstica, 30 anos e mãe da Helen Lohany, de 12 anos. “É muito difícil conseguir vaga em creche, em escola, em tudo. Tem que deixar os meninos tudo trancado por causa da violência.”

LICENÇA-DESEMPREGO

De acordo com dados do Centro de Referência e Assistência Social (Cras) responsável pelas 22 comunidades do entorno do Santa Maria, a área é responsável por 52 auxílios-natalidade dos 423 concedidos na capital desde 2017. O benefício consiste em um valor de meio salário mínimo concedido após a gestação para mães cuja renda per capita de sua residência esteja abaixo de R$ 83. “Na maioria dos casos elas são as chefes de família, a solidão da maternidade negra é uma constante”, explica Laila Oliveira, 30 anos, militante do Coletivo de Auto-organização de Mulheres Negras Rejane Maria, mãe de Enzo e Bento.

Decilene. Trabalhadora doméstica, mãe de Helen

Assim como milhares de mães em Sergipe, Decilene enfrentou dificuldade em arranjar emprego após a gestação de Helen. “Até os 4 anos de idade eu penava pra conseguir trabalho. Ninguém quer contratar gente com criança de colo. Não conseguia creche pra ela na época, daí tinha que dividir o salário com quem ficava cuidando da minha filha, o dinheiro acabava que não dava  pra nada”, lamenta.

“Em 2015 foi registrado que 17,4% das mulheres negras com ensino médio estava sem emprego, contra 11,6% da média feminina. Tudo isso reflete no pós-parto, não é fácil a criação dos filhos e ser mãe nesse país, muito menos sendo mulher negra”, afirma Joana Carvalho, enfermeira obstétrica, integrante da Equipe Luminar, mãe de Rosa.

VENTRE LIVRE

Onde não há emprego, sobra cárcere. A Secretaria de Estado da Justiça afirma que Presídio Feminino (Prefem) conta atualmente com 234 internas, 70% dos casos por tráfico. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2015, 68% da população carcerária feminina é negra. O estudo também revelou que Sergipe liderava a época o ranking de presas provisórias com incríveis 99% dos casos.

Joana Carvalho. Enfermeira obstétrica, mãe de Rosa

Dentre as 234 internas do Presídio Feminino, encontram-se cinco gestantes e uma lactante com um bebê que completa 21 dias da data de publicação desta reportagem. Em fevereiro deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu habeas corpus coletivo que transforma em prisão domiciliar a prisão preventiva de gestantes e mães de crianças de até 12 anos. “Há jurisprudência conceder a prisão domiciliar, mas é a caneta do juiz que resolve. É preciso averiguar o caso de cada uma”, afirma a advogada e professora de Direito Aline Passos.

PARIR SEM VIOLÊNCIA

“Eles estavam brigando entre si enquanto me costuravam, por causa de um picolé.” Gritos, omissão, indiferença. No parto de seu segundo filho Bento, Laila relata uma série de violações sofridas na Maternidade Santa Isabel, entidade filantrópica da capital sergipana. “Eu pedi uma bola de pilates que estava pendurada, pra fazer exercícios que aliviam a dor, disseram que não podia. Perguntei se poderia trazer a minha de casa, também negaram. Me deixaram com o avental todo manchado de sangue por horas, e eu pedindo pra trocar. Não deixaram a doula me acompanhar no quarto, tive que escolher entre a doula e o meu companheiro”, relata.

A militante do Coletivo Rejane Maria está prestes a sair da Licença-Maternidade, ela confessa que ainda não superou a experiência. “Nunca vou me esquecer dos olhos da enfermeira que gritava comigo. Colocaram a sonda em mim sem anestesia. Depois do parto eu passei um dia inteiro sentindo dor porque a medicação tinha acabado e eles sequer avisaram.” Até o fechamento desta edição, a reportagem do CINFORM não conseguiu contato com a assessoria da Maternidade.

ANIMALIZAÇÃO DOS CORPOS NEGROS

De acordo com a pesquisa SUS Sem Racismo, organizada em 2014, 60% das vítimas de mortalidade materna no país são negras, somente 27% das mulheres negras tiveram acompanhamento durante o parto, enquanto do lado das mulheres brancas esse número chega aos 46,2%. “Esse é um triste retrato do racismo institucional ainda vivenciado pelas mulheres negras na rede pública, que reflete em sua saúde e na sua sobrevivência após a gravidez e o parto. A mortalidade materna ser maior entre as mães negras não é um fato a ser esquecido, deve ser amplamente discutido e prevenido”, ressalta Joana Carvalho, da Equipe Luminar.

Laila Oliveira, militante do Coletivo Rejane Maria. Mãe de Enzo e Bento

Laila chama a atenção para o discurso de animalização da  mulher negra, desdobramento do racismo institucional em curso no país. “É aquele coisa  de achar que a mulher negra “aguenta” dor, que ela merece sofrer porque o nosso corpo aguenta. Quase como se fosse uma  punição mesmo. ‘Não gritou na hora de parir, vai gritar agora  por que?’ A gente tem relato de profissional de saúde que se recusa a fazer exame de  lâmina em mulheres negras, porque tem nojo”, afirma.

Diferente da média nacional, Decilene conseguiu fazer todo o Pré-Natal e o encaminhou o parto normal na Maternidade Nossa Senhora de Lourdes. De acordo com dados da assessoria da Maternidade, 50% dos partos realizados em 2017e 2018 foram cesáreas, enquanto que a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera desde 1985 que a taxa ideal de cesáreas deve ficar em torno de 10 a 15%.

PARIR, TRABALHAR, VIVER E GOZAR

“Hoje eu me posiciono, não me calo e estou sempre atenta para revidar a qualquer comentário ou atitude racista, de quem quer que seja”, Ana Lúcia, mãe do Joaquim, afirma em alto e bom som que recusa o posto de “carne mais barata do mercado”, cantado e denunciado por Elza Soares. A contragosto da suposta abolição rubricada pela filha do imperador há 130 anos, o caminho das mulheres negras por trabalho, equiparação salarial, para gestar, parir e criar com dignidade, longe das taxas de homicídio e encarceramento, todo o caminho é longo, tortuoso e complexo.

Que o dia 13 de maio sirva de alento e reflexão para as pretas que parem ou não, que criam e recriam o emprego de suas vidas, suas existências crivadas em tempos de amor e ódio.

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