Por Henrique Maynart

O chamado foi feito de última hora, não haveria de ser diferente, quem batalha pela vida dá de cara com a morte no susto. Às dezesseis horas e quinze minutos da quinta-feira, 15, um punhado de gente e soluço se apertava próximo às banquinhas vazias da Praça da Catedral, ao lado do Cacique Chá. Cartazes por fazer, olhos profundos, o susto em cada semblante que se aproximava. “Não dormi nada hoje, estou um caco. Passei a noite vendo os vídeos dela”, comenta Linda Brasil, militante da CasAmor e da AmoSerTrans, com Lídia Anjos, do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH).

Manifestantes denunciam assassinato de Marielle com faixas e cartazes

Trêmulo, Pedro Alexandre soluçava escorado em uma das banquinhas enquanto confeccionava seu cartaz: “não foi assalto, foi execução”.  Severo D´Acelino, imponente e trajado de branco, traçava uma tapioca enquanto a caixa de som que amplificaria as falas daquela tarde era testada. Pedro, de olhar severo, Severo, de rosto duro feito pedra, duro feito Pedro. O velho e o moço, militantes negros sergipanos, espelhavam-se naquela tarde cada qual no seu canto, cada qual com sua revolta.

Eu sou porque nós somos

Marielle tem oito letras e milhões de olhos pra desaguar sua morte. Barbaramente assassinada na noite de quarta, 14, junto com seu motorista, Anderson Pedro Gomes, a militante de direitos humanos havia conquistado 46 mil 506 votos nas eleições municipais do Rio de Janeiro em 2016, pelo PSOL.  Mulher, negra, periférica do Complexo da Maré, candomblecista, socióloga, LGBT, a jovem parlamentar de 38 anos congregava em seu primeiro mandato as dores e delícias do seu povo, da sua pele e do seu corpo. Em 15 meses de mandato ela havia apresentado 16 projetos de lei no Legislativo Carioca.

A vereadora era relatora da comissão que investigava e acompanhava a intervenção militar que corre solta pelo Rio de Janeiro desde fevereiro. Quatro dias antes de sua execução ela havia denunciado, em suas redes sociais, ações de violência policial na comunidade de Acari. Ela voltava de um encontro com mulheres negras no centro do Rio por volta das 21h30, quando quatro balas se chocaram contra sua cabeça. Foram encontradas nove cápsulas no local do crime.

Luto e luta: os dois elles de Marielle

Seu corpo foi velado na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, atos de vigília e solidariedade foram marcados em dezenas de cidades brasileiras, Aracaju não seria diferente. A caixa de som era testada no jogo de tentativa e erro, até que Sônia Meire, presidente do Diretório Municipal do PSOL Aracaju, conseguiu dar as primeiras coordenadas para o início da vigília: todos, em procissão silente, para a porta da Câmara Municipal de Aracaju. Os cartazes tabelavam com o silêncio em meio ao congestionamento do centro de Aracaju. “Eu sou porque nós somos”, “ Não foi assalto, foi execução”, “Marielle presente hoje e sempre”, “Não irão nos calar”, “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

Em poucos minutos o círculo ocupou meia pista da Rua Itabaiana

Em poucos minutos o circulo formado pelos presentes já não cabia mais na calçada da Câmara Municipal de Aracaju e os manifestantes ocuparam meia pista da Rua Itabaiana. “Este assassinato foi um ataque à nossa democracia. Não podem matar uma vereadora eleita e achar que ficarão impunes”, afirmou Linda Brasil. “Mais uma mulher preta da periferia foi assassinada, precisamos reagir”, dizia a professora Alessandra Santos.  “Este Estado machista e patriarcal matou Marielle, assim como matou a professora Ivânia, em Itabaianinha”, lembra Ângela Melo, da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE). Todas as falas, sem exceção, eram seguidas por gritos de “Marielle Presente, hoje e sempre!”, durante todo o ato.

As portas da CMA permaneciam fechadas para aquele ato de solidariedade e luto. A tarde escorria em direção à escuridão e mais pessoas iam chegando, o círculo da meia pista ignorava a placa em frente ao prédio que ordena, solene e unilateralmente: “apenas embarque e desembarque”. Mal sabia aquela placa insolente que as centenas de pessoas estavam embaladas em outro desembarque, em outro fluxo, mas o que é que sabem as placas que ordenam esta cidade?

De portas fechadas para a democracia

O círculo inchava progressivamente a ponto de não caber em qualquer meia pista, era necessário fechar a rua inteira. Feito. Sete ou oito manifestantes tomaram a iniciativa de fazer um cordão para isolar o trecho. Agora era possível sentar no asfalto, sentir a cidade amornar com o crepúsculo formado sobre a cabeça dos manifestantes após um dia de sol e cansaço. Os faroletes da Rua Itabaiana abriam o sinal verde para o asfalto vazio, do início da Praça até a altura do Edifício Maria Feliciana não haveria qualquer indício de tráfego e motor para contar vantagem.

Cartazes foram colados na porta da CMA

Uma série de organizações se fizeram presentes: coletivos de juventude, centrais sindicais, a Auto-organização de Mulheres Negras Rejane Maria, grupos LGBT, representantes de religiões de matriz africana. Um mosaico de dor e diversidade era formado por aquelas centenas de corpos.   Alguns vereadores estiveram presentes no ato, mas não fizeram uso da palavra. Kitty Lima, da Rede Sustentabilidade, observava o ato à esquerda, próximo da porta da Câmata. Isac (PC do B) e Américo de Deus, também da Rede, circulavam discretamente pelo ato. “Esta Casa está de portas fechadas para este ato de vigília assim como está de portas fechadas para a democracia”, bradava o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Sergipe (OAB/SE), Henri Clay Andrade.  “O assassinato de Marielle mostra mais uma vez que precisamos acabar com o modelo de polícia e de segurança pública que temos em Sergipe e no Brasil”, afirmava Mário Leony, delegado da Polícia Civil de Sergipe e membro da Rede Nacional de Operadores da Segurança Pública LGBT.

Enterraram uma semente

Após diversas falas e intervenções culturais, o ato se encerrou às dezoito horas e quarenta e quatro minutos daquela quinta-feira. Os cartazes foram colados na porta da CMA, junto a uma vela roxa. As últimas notícias dão conta de que as balas que mataram Marielle e Anderson viriam de um lote encomendado pela Polícia Federal no  ano de 2006. Outras balas deste lote teriam sido usadas em outras chacinas, como a ocorrida em Osasco em 2015. O superintendente da Polícia Civil do Rio de Janeiro minimizou a ajuda oferecida pela Polícia Federal para apurar o caso, uma segunda testemunha do assassinato fora encontrada, as câmeras de vigilância estão sendo analisadas.

Independente do resultado oficial das investigações, os mandantes desta execução se depararam com uma reação em cadeia com proporções internacionais. O Parlamento Europeu se posicionou através de uma ação do partido espanhol Podemos, o STF, o Congresso Nacional a Presidência da República foram se posicionaram, o assassinato rendeu manchete em periódicos expressivos como o New York Times, Le Monde, El Pais e Washington Post. O mundo inteiro está debatendo as ações da intervenção federal em curso no Rio de Janeiro, a militarização das políticas públicas e a situação brasileira. Os mandantes do crime tentaram enterrar Marielle, mas não sabiam que ela era semente. Seus caules e flores haverão de brotar em meio às águas de março, em meio ao fim do verão, e alguns hão de saber que quem não pode com a formiga não assanha o formigueiro.

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