“Tenho um esposo forte e obstinado”, disse a técnica em enfermagem Josiene Hora, com um sorriso no rosto e um olhar de confiança. Bia, como gosta de ser chamada, mencionou que o seu marido já estava descansando na enfermaria destinada aos pacientes de transplante renal do Hospital Universitário da Universidade Federal de Sergipe (HU-UFS), vinculado à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh). Algumas horas depois, ela doou um dos seus rins a Luiz Hora, com quem vive há quase três décadas. “É mais do que um ato de amor. Ele é humano. E se todo mundo pensasse assim, pondo-se no lugar do próximo, muita coisa neste mundo seria diferente”, garante Bia. Os problemas renais de Luiz começaram em 2002; no ano passado, três meses depois de iniciar a hemodiálise, ouviu da esposa que ela queria lhe doar um dos rins.
Edézio dos Santos viveu uma história muito parecida com a de Luiz. Quando a sua esposa Iara Santos lhe doou um dos seus rins, foi mais um capítulo de uma história de amor de duas décadas. A saúde renal de Edézio começou a falhar quando ele descobriu, no passado, que sofria de gota; anos de tratamento para a doença, a base de anti-inflamatórios, deterioraram os seus rins. Fala de sorte, no entanto, porque não chegou a completar um ano de diálise. “Adaptei-me às limitações e fiquei na expectativa do transplante, quando a Iara me disse que queria me doar um rim. Muitas coisas passaram pela minha cabeça: os problemas cardíacos que a diálise poderia me causar em longo prazo; o amor que ela sentia por mim; o fato de que o rim era dela e não tinha que me dar. Foram momentos de muita expectativa até sabermos que o transplante seria realizado aqui no hospital universitário”, lembra Edézio.
Luiz Hora recorda-se dos testes para ver se o rim da sua esposa era compatível com ele. Pensava que os doadores e os receptores deveriam ser parentes sanguíneos, mas estava enganado. Assim como Edézio, Luiz não precisou ficar muito tempo na fila do transplante porque contou com a doação do rim da sua esposa; também não chegou a completar um ano de diálise. Porém, passaram-se mais de 20 anos desde o diagnóstico de nefrite, que foi destruindo os seus rins aos poucos.
Luiz Gonzaga Hora, primeiro paciente transplantado
No dia da cirurgia no HU-UFS/Ebserh, Edézio estava mais preocupado com Iara do que consigo mesmo. A sua maior preocupação era que a esposa se recuperasse o mais rápido possível. Dias depois do procedimento, estava feliz em saber que ela havia voltado para casa sem problemas. “Tudo saiu bem. Pensei nisso o tempo todo. E o rim dela agora está aqui, dentro de mim, funcionando normalmente”, relata.
De acordo com o gerente de Atenção à Saúde do HU-UFS/Ebserh, Raimundo Saturnino, ambas as operações foram um êxito. As cirurgias, realizadas na segunda semana de outubro, fizeram com que Sergipe vivesse um momento inédito no Sistema Único de Saúde (SUS): pela primeira vez, um hospital público sergipano realizou transplantes de rim. A última vez em que um transplante renal se realizou em Sergipe foi há dez anos num hospital particular de Aracaju. Por enquanto, o HU-UFS/Ebserh passa a ser o único estabelecimento apto a fazer os transplantes em todo o estado.
Antes e depois das cirurgias, os casais Luiz e Bia e Edézio e Iara foram pacientes exemplares. Seguiram as indicações dos médicos do HU-UFS/Ebserh para garantir o êxito dos transplantes. “Você tem que ser um bom paciente para que tudo corra bem. Fazer exatamente o que te dizem. E tivemos todo o suporte no hospital universitário”, explica Bia.
Cecília Hora, Dalmo Correio Filho, superintendente do HU, e Elves Cavalcanti
Luiz e Edézio já se encontram bem. Não necessitam mais de diálise. No novo caminho que os aguarda, não poderão mais tomar certos medicamentos, comer alguns tipos de alimentos e beber líquidos que possam prejudicar os rins transplantados e os rins que ficaram nas doadoras. “Sei das limitações, que também valem para a minha esposa, já que agora ela tem apenas um rim como eu, mas vamos aproveitar a liberdade que esse novo cenário de boa saúde vai nos proporcionar”, relata Luiz.
O superintendente do HU-UFS/Ebserh, Dalmo Correia Filho, destaca que todo o trabalho administrativo realizado ao longo dos últimos meses foi crucial para que o hospital conseguisse iniciar os transplantes renais. “Dentro da complexidade que representa o nosso hospital-escola, muitos passos foram dados, além da tutoria prestada pelo Albert Einstein. O trabalho em equipe, de profissionais de diversas áreas, permitiu que pudéssemos avançar para uma nova era de transplantes em Sergipe”, avalia.
Serviço de transplante renal
O HU-UFS/Ebserh conta com uma equipe de profissionais experientes coordenada pelo chefe da Unidade do Sistema Urinário, Ricardo Bragança. O urologista explica que, para que o hospital pudesse realizar os transplantes, foi necessário que todos os membros da equipe participassem de uma tutoria de capacitação com o Hospital israelita Albert Einstein, resultado de um convênio com o Ministério da Saúde.
“Assistimos a uma nova etapa. Depois da interrupção, em 2012, da realização de transplantes renais que fazíamos em hospital privado, o nosso hospital-escola retoma essa realidade em Sergipe. É bom para a população, que terá essa opção sem precisar sair do estado. O Hospital Albert Einstein, parceiro do SUS nessa tutoria que oferece aos nossos profissionais, reforçou a competência dos serviços implicados e deu a cada membro da equipe a formação adequada”, ressalta Ricardo Bragança. O gestor lembra, ainda, que os transplantes renais no HU-UFS/Ebserh serão realizados, inicialmente, na modalidade inter vivos.
O HU-UFSEbserh conta com uma equipe de profissionais experientes
Parceria com o Albert Einstein
A tutoria prestada pelo Hospital Israelita Albert Einstein foi fruto de um convênio com o Ministério da Saúde, que prepara hospitais habilitados no SUS para fazerem transplantes renais com os critérios desejáveis de excelência. No caso do HU-UFS/Ebserh, a parceria começou em 2019, mas a pandemia de covid-19 adiou algumas etapas.
No final de 2021, O HU-UFS/Ebserh retomou a tutoria com algumas partes práticas que estavam pendentes e, em janeiro de 2022, iniciou o ambulatório de transplante pré-renal. “Os pacientes que são candidatos a realizar transplante por doador vivo, que vai ser a modalidade inicial, começaram a ser preparados há alguns meses. Hoje temos algumas duplas que estão preparadas e outras que estão em fase de preparo”, detalha a enfermeira Michelle Cardoso.
Durante a tutoria, a equipe responsável do HU-UFS/Ebserh também visitou as instalações do Albert Einstein e conheceu os protocolos aplicados ao transplante renal naquele hospital, além de poder acompanhar, na prática, a atuação do centro que é considerado referência no Brasil, pelo Ministério da Saúde, para esse tipo de procedimento.
Josiene Hora (Bia), doadora (esposa) de seu Luiz Hora
O chefe da Unidade do Sistema Digestivo do HU-UFS/Ebserh, Antonio Junior, que compõe a equipe de cirurgiões para os transplantes renais, ressalta que a tutoria só terminará em 2023, já que o objetivo é realizar os primeiros transplantes ainda sob a supervisão do Albert Einstein. “Ao final da tutoria, os participantes estarão plenamente capacitados para a continuidade na realização dos procedimentos, o que permitirá atender ao anseio da população sergipana em relação à manutenção frequente e de qualidade de transplantes renais no estado”, opina o gestor.
“O hospital está tendo todo o cuidado e empenho para fazer esse sonho acontecer. Aracaju tem todas as condições de se tornar um polo e, de repente, até trazer também, de outros estados, pessoas que precisam fazer o transplante”, assevera Antonio Junior.
O Hospital Albert Einstein enviou uma equipe especializada, encabeçada pelo cirurgião Mario Nogueira, que ficou alguns dias em Aracaju e deu suporte aos profissionais locais no procedimento operatório e no pós-operatório imediato dos primeiros dois transplantes. “Voltaremos para os próximos transplantes, pois o protocolo garante que o Albert Einstein acompanhe o hospital universitário nas primeiras intervenções”, reforça.
Tipos de transplantes
O procedimento de transplante renal inter vivos consiste em identificar, no entorno social do paciente, pessoas dispostas a realizar a doação, desde que não haja incompatibilidade. Nesse caso, se o doador é parente do receptor, classifica-se o transplante como de pessoa relacionada (consanguínea). Esse é o primeiro tipo de transplante que o HU-UFS/Ebserh vai começar a realizar, chamado de eletivo.
Por sua vez, o procedimento que envolve um doador cadáver não é eletivo, pois o receptor deve estar inscrito numa lista única estadual e preencher os demais critérios legalmente previstos. Nessa situação, o hospital recebe o paciente enviado pelo sistema de regulação e, havendo compatibilidade, realiza o procedimento. Ademais, o doador deve ter falecido por morte encefálica e a doação precisa de autorização expressa da família.
Luciano Viana, enfermeiro, Douglas Rafanelle, nefrologista, Raimundo Saturnino, gerente de atenção à saúde, Ricardo Bragança, urologista e Michelle Cardoso, enfermeira
Em ambos os casos, os procedimentos são precedidos por uma série de exames. “Primeiramente, faz-se o exame da tipagem sanguínea, que é o básico. Depois, há o exame de HLA para o que chamamos de prova cruzada, a fim de determinar se as duas pessoas são compatíveis ou não. Além disso, é preciso ver as condições clínicas do receptor e do doador por meio de exames laboratoriais e de imagem”, explica a enfermeira Michelle Cardoso. No HU-UFS/Ebserh, o candidato ao transplante renal poderá fazer quase todos os exames necessários no próprio hospital-escola. “O HLA e outros exames mais específicos são realizados em parceria com a Central de Transplantes da Secretaria da Saúde de Sergipe”, acrescenta.
Acompanhamento pós-transplante
O urologista Ricardo Bragança garante que o HU-UFS/Ebserh vai acompanhar todos os pacientes de transplante renal. O protocolo de atendimento já está regulamentado para acompanhamento ambulatorial, destinado à observação do pós-operatório e intervenção em eventuais ocorrências, inclusive, se necessário, com disponibilidade de nova internação hospitalar.
“O cronograma do protocolo prevê, como regra, um acompanhamento inicialmente semanal. Depois, com a evolução positiva do quadro clínico, as consultas se tornam mensais. Se tudo continuar correndo bem, o paciente passa a um acompanhamento bimensal ou trimestral”, detalha o médico.