Naquele que o próprio autor anuncia como sendo seu último romance, Saracura se apresenta com uma
linguagem poética que ele utiliza de forma muito apropriada, buscando nas raízes profundas da Terra Vermelhao significado das palavras e dos gestos que ele pretende resgatar como um compromisso de memória que ele registra para não deixar se perder.

Vidas que se cruzam e se entrelaçam, lugares que percorre como se carecesse trazer de volta a infância,
um sonho contido que permeia a vida de todos nós e que parece agigantarse na velhice quando, segundo ele,
a solidão se torna companheira inseparável. É uma história de família protagonizada por Flor. Colhida aos
dezoito anos de idade, o jardineiro que lhe devia admiração, amores e cuidados a aprisiona e a maltrata
porque, como ela acaba declarando em sua velhice como forma de absolvição, “ele percebeu que se me desse espaço
eu o ocuparia de imediato”.

Flor e Romo se casam no final dos anos trinta do século passado e criam juntos doze filhos. A lida na roça envolve
o trabalho com a terra e a criação dos bichos. A junção desses dois elementos são a garantia de boa nutrição para uma família tão prolífera e ainda suficiente para manter vivo um ou outro sonho. O mais comum, para aqueles que tiram da terra tudo aquilo que ela nem sempre pródiga pode lhes dar, é criar os filhos na cidade grande onde os estudos lhes garantirão um futuro melhor. É o que alimenta Flor já que Romo muitas vezes a fez “chorar sozinha, presa num armador de rede “ ou quando ele “me empurrou para dentro de casa, amarrou meus pés e mãos, me trancou na camarinha escura”.

A cidade grande além de ser melhor para os filhos pode ser uma libertação para Flor. Ela já se conformara em ficar quieta, em não alçar voos. Ela já sabia que as suas asas que teimavam em crescer na sua imaginação, eram de palha. Como Ícaro, se voasse muito alto poderia se esborrachar no chão.

Caminhar era preciso.

Muitas mulheres aprendem a viver de silêncios como resistência, quando a voz, por falta de uso e de escuta, engasga
as vontades e elas sequer a usa como desafio ou como arma.

Bem estabelecidos em Aracaju, filhos criados e bem-postos, a vida prepara uma armadilha pra Romo. A memória
começa a lhe confundir as coisas. Mas mesmo quando a memória falha, o instinto de submeter Flor permanece
sob as mais variadas formas das quais nem mesmo ele se dá conta, mas que ferem na mesma medida do passado.

Pode não ser proposital, mas é cruel do mesmo jeito. Por fim, Romo a expulsa de casa sem qualquer aviso. Apenas troca o cadeado e a deixa na rua. Os filhos a acolhem com cuidados e muito carinho.
Eles são o bálsamo da sua vida.

Quando Romo fica extremamente debilitado, Flor manda que os filhos o tragam para sua casa com toda a equipe
de cuidadores. Será minha vingança às avessas, ela declara. “Guardarei as flechas silenciosas na aljava e sussurrarei ao ouvido dele cada mágoa que me causou na vida”.

Assim que Flor completou 81 anos, Romo, que lhe cravara tantos espinhos desde os 18 anos, com essa cabala cruel
a libertou. Agora ela pode finalmente cultivar as suas asas. Lembra-se com carinho da tia Valentina, aquela que
quebrou imagens, estraçalhou tabus e encantou as cabeças das meninas que a conheceram. Não esperava autorização, ela mesma fazia. Tia Valentina sempre usou as suas asas.

A partir desse momento Flor se abre para a vida de forma intensa. Nas festas de família agora agigantada com tantos
filhos e netos ri desbragadamente, deixando que toda a sua alegria de viver se espraie como um rio a desaguar livre. Em um desses momentos que serão muitos, seu filho Vito, tão sonhador quanto ela, se encanta com o brilho dos seus olhos verdes e os elogia, ao que ela responde sem se engasgar com as próprias palavras que agora lhes são libertas; “olhos verdes de raiva profunda, baços de dor recolhida”.

Ednalva Freire Caetano – Pedagoga
e Mestre em Educação pela UFS

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

  • Padroeira de Aracaju, Nossa Senhora da Conceição inspira católicos e povos de terreiro na fé

    A celebração em homenagem a Nossa Senhora da Conceição, padroeira [...]

  • Uma Mulher com Asas de Palha – RESENHA DO ROMANCE OS ESPINHOS DA FLOR, DE ANTONIO SARACURA

    Naquele que o próprio autor anuncia como sendo seu último [...]

  • Inscrições do concurso para professor da rede estadual de Sergipe se encerram nesta segunda-feira, 8

    Encerra-se às 18h desta segunda-feira, 8, o prazo para de [...]

  • E agora Rogério Carvalho e Edvaldo Nogueira? Serão oposição ou “laranjas”?

    Este colunista não vai dar muitas voltas para entrar no [...]

  • FÁBIO MITIDIERI – “Este é o grupo com o qual caminharei na eleição de 2026”

    Governador diz que Sergipe “é a cola” que une os [...]