Ontem, depois de quase seis meses, saí pela primeira vez do meu confinamento – prefiro chamar pelo nome certo, uma vez que distanciamento social implica em convivência com outras pessoas e eu vivo só. A sensação era de que um algo inusitado estava para acontecer e como tal me vi ensaiando algumas cenas como se estivesse me preparando para um grande evento, afinal como afirmou Saint Exupéry, é preciso ritos. A primeira coisa que ocorre a uma mulher quando ela se prepara para algo assim é “com que roupa que eu vou?” e aí todas as fórmulas desenvolvidas ao longo do tempo começaram a cair por terra. Não, não seria a mais bonita, nem aquela que eu mais gosto, afinal quando voltar pra casa ele vai, traje completo, pra máquina de lavar posto que, a essa altura, eu não tenho mais paciência pra lavar com o cuidado devido as roupas mais finas e delicadas. A opção então teria que ser pela praticidade, consequentemente a mais simples e não a mais bonita. In Natura.

Depois do banho e adequadamente vestida para os padrões atuais, começo a pensar em algum tipo de maquiagem para lembrar em seguida que devo usar máscara e portanto o batom, companheiro inseparável desde a minha adolescência, também não se adequa à máscara pois além de não ser percebido pelo outro, já que meu sorriso estará escondido, ainda tem a inconveniência de manchar a máscara. O que antes embelezava, agora suja. Descartado o batom parto então para alguns adereços que sempre fizeram parte dessa composição mas me dou conta que terei que usar frequentemente o álcool em gel que com certeza além de estragar os anéis também não combina com relógios e pulseiras. É mais sensato evitá-los e sair. In Natura.

Os sapatos e a bolsa que deverão ser higienizados na volta também não são escolhidos de forma a combinar com o conjunto da obra, mas nos termos da moda atual cujo “dernier cri” é segurança acima de tudo. Os sapatos estão ficando na soleira da porta, hábito que os japoneses cultivam deixando-os numa área chamada genkan, localizada sempre um degrau abaixo da entrada principal da casa. Para eles é uma questão de limpeza física mas também espiritual pois você não suja a casa, nem a sua nem a dos outros, e também se liberta das impurezas que estão no mundo fora do seu espaço privado. O genkan é uma espécie de fronteira entre o mundo

exterior e a casa, espaço que agora precisamos cultivar com extremo cuidado pois tudo parece contaminado à nossa volta e portanto é necessário entrar em casa limpos. In Natura.

Vencida a maratona, encontro-me lá fora carregando tantos medos posto que tudo agora soa ameaçador e vou me desviando do próximo costurando em zig zag o meu caminho pois o toque se configura nas circunstâncias atuais numa das maiores ameaças à integridade física mesmo que, em alguns casos como o meu, a ausência do mesmo possa se tornar uma grave ameaça à estrutura psicológica. O prazer da saída vai aos poucos sendo substituído pela angústia da divisão dos espaços com o outro, um exercício de egoísmo agora tão necessário numa contradição flagrante com a extrema necessidade de solidariedade, e de repente bate aquela vontade de voltar para a segurança da casa. Mas voltar pra casa também não é uma coisa simples pois todo um trabalho reverso tem que ser feito e emerge aquela vontade louca de, em chegando em casa, deixar na porta não só os sapatos mas todas as coisas que carrego como u

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