Era fim de tarde e minha chefe me convidava para uma reunião ao final do dia com o presidente da empresa. Esta era uma rotina natural para mim diante das responsabilidades que assumia em 2012. Após cinco anos de uma carreira em ascensão naquela companhia eu estava sendo comunicada sobre o meu desligamento. Surpresa, com um filho pequeno e repleta de compromissos financeiros, encarei aquele abismo há oito anos. Não foi por falta de desempenho, disseram.
Há ganhos que vêm disfarçados por perdas. É aquele recado divino da vida dizendo que você é capaz de mais. O sonho de abrir uma agência de comunicação já existia. Mas o que faltava? Coragem. Eu tinha um excelente salário, com benefícios e ambiente de trabalho maravilhoso. Contudo, me culpava por não priorizar os cuidados junto ao meu filho e também adoecia por não estar cuidando direito de mim. Já estava com hipertensão e minhas crises alérgicas eram inumeráveis. Naquele primeiro ano como empresária fui de uma conta para onze marcas atendidas. Por quanto tempo me sabotei? Não sei, mas entendo que o tempo fora meu aliado. Amadureci profissionalmente naquela grande escola.
Diante desta recessão econômica, impactada pela pandemia do coronavírus, assistimos a um palco de perdas, em todos os sentidos. Virou rotina receber notícia de alguém conhecido que faleceu decorrente do vírus. Também está no cotidiano mencionar quais empresas fecharam as portas. Tempos Modernos, película de 1936 estrelada pelo icônico Charles Chaplin, continua uma obra atual. O quê e quem irá nos frear? O protagonista em 2020 é o covid-19.
É um risco muito grande quando assumimos o modo piloto automático. Automatizados tal qual robôs e apegados a uma rotina, há um combate interno para que nada nunca mude, como se os ciclos fossem previsíveis. Os vícios de controle e poder são altamente nocivos à saúde física, mental e emocional. Há quem se apegue até por relacionamentos baseados em competição e rancor. A era industrial retratada em Tempos Modernos denunciava o homem como sendo a máquina. Quase um século se passou e veja só onde nos encontramos: reféns de telas, de deliverys que vão de alimentação, a diversão e até relacionamentos casuais que iniciam suas jornadas pelas telas dos celulares. A complexidade da ‘máquina’ só adoece cada dia mais. Há muita opção, pouco foco, baixa tolerância e as máquinas estão cada dia mais descartáveis. Poluição em todos os níveis.
E agora nos colocamos em isolamento social por prazo indeterminado. Sim, a responsabilidade é inteiramente coletiva. Mas as saídas já começam a dar vazão e há luz no fim do túnel. “Agora que deixei de ser executivo, faço pães, é uma terapia para mim”, confessou-me um colega paulista na ocasião do Dia do Padeiro, no último dia 8. Eu indaguei: “você era OU estava executivo?”. Ele concordou: “sim, eu estava executivo e agora estou feliz”.
Uma amiga psicóloga me relatava de um novo negócio que está fazendo sucesso em São Cristóvão, a quarta cidade mais antiga do País. Além das famosas queijadas de São Cri Cri, agora o sucesso absoluto é de um bistrô chinês pilotado por um ex-funcionário de um restaurante oriental da capital. O antigo colaborador se refez e claro, reconhece em si o que sabe fazer de melhor. Fiquei a imaginar as irmãs do Convento de São Francisco saboreando Yakissoba empenhadas nos hashis.
Estamos notadamente sendo expulsos a sair dos Tempos Modernos de Chaplin. Definitivamente não somos máquinas e precisamos cuidar de nós próprios e dos que amamos, cada dia mais. Carl Jung, psiquiatra suíço e pai da psicologia analítica, dizia que não há despertar de consciências sem dor. “As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para não enfrentar a própria alma. Ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por se tornar consciente da escuridão”.
Uma demissão, divórcio, a perda de um ente querido, a privação do ir e vir, uma doença que lhe visita. É inevitável passar por esta vida sem perdas que nos transformem em algo melhor. Quando eu escolhia trabalhar acima da minha capacidade, negligenciava o mais sagrado: a minha saúde, o tempo precioso para mim e para o meu filho, a quem eu terceirizava cuidados. De forma inconsciente eu repetia um modelo estrutural familiar. Adoro pesquisar a etimologia das palavras e olha só o que significa o verbo perder: vem do latim ‘perdita’, algo que deixou de se ter. Aprofundando: o que temos? Se uma consciência alerta como Buda proferiu que “nada é permanente”, a única coisa existencial é que só temos o agora, o presente. Por isso mesmo se chama ‘presente’. E o que eu escolho fazer neste momento? No meu caso, estou escrevendo por imenso prazer.
Então quando olho minha trajetória profissional agradeço por aquela demissão e pela perda temporária de saúde que precisei passar para enxergar o essencial. Pois o que eu sou, em essência, levo comigo para todos os lugares. E quando recebo o carinho e estima daqueles seres amáveis que me demitiram, reconheço o quanto somos instrumentos divinos na vida uns dos outros. Ninguém, absolutamente ninguém, está por acaso no nosso caminho. E se você chegou até aqui nesta leitura é porque alguma dose de esperança e fé o universo lhe remete. Prefiro apostar nos Tempos Modernos da melodia de Lulu Santos, concorda? “Eu vejo a vida melhor no futuro, eu vejo isso por cima de um muro, de hipocrisia que insiste em nos rodear…Eu quero crer no amor numa boa, que isso valha pra qualquer pessoa, que realizar a força que tem uma paixão. Eu vejo um novo começo de era, de gente fina, elegante e sincera..”