Ocupação do MTST sofre reintegração de posse na Zona Sul de Aracaju
Por Henrique Maynart
Oito dias e noites de madeira, lona e colchão, mão, calo e garganta. Oito dias com a cabeça e os pés na lama. Oito dias com o pensamento na chave que abre porta e janela do lugar que é seu de fato e de direito. Casa. Nos oito dias que cortaram a segunda semana de maio, cerca de 600 famílias organizaram a Ocupação Marielle e Anderson no terreno ao lado do Shopping RioMar, no bairro Coroa do Meio, Zona Sul da capital. O acampamento é organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Esta foi, ao menos, a segunda ocupação que o terreno sofreu nas últimas décadas. A primeira ocorreu nos anos 80, quando o poder público deu início ao aterramento da área para a construção do bairro, que se tornou viável a partir da construção da Ponte Godofredo Diniz, em 1977. Ao contrário do poder público municipal, o mar aberto da Boca da Barra enfrenta maiores dificuldades em reaver seu território de origem, o molhe vem evitando a retomada do mar nas últimas décadas. A juíza Hercília Maria Fonseca Lima Brito, da 12ª Vara Cível de Aracaju, julgou procedente o pedido de reintegração de posse da Prefeitura de Aracaju na quinta-feira, 10. O mandado foi entregue na manhã de sexta-feira, 11.
OITO DIAS DE ENTRAVE
No decorrer da semana anterior, dentre as tratativas junto à Secretaria Municipal de Assistência Social (Semasc) a coordenação do movimento não autorizou a realização de cadastro das famílias até que a Guarda Municipal de Aracaju (GMA) se retirasse do perímetro. “Nós queríamos negociar a partir do momento em que a GMA não impedisse o direito de ir e vir dos ocupantes. Nos primeiros dias chegaram a impedir a entrada de alimentos e água, o que é inadmissível”, afirmou em nota a coordenação do movimento. O coronel Luís Fernando Silveira, secretário de Defesa Social do Município, afirmou que Guarda estaria no local para garantir a própria segurança dos ocupantes, além de negar que a GMA estaria impedindo e entrada de mantimentos no local. “Estamos impedindo a entrada de instrumentos que possam fazer a ocupação crescer mais do que ela já está, como madeira, lona, dentre outros, mas não impedimos a entrada de água e comida”, afirmou o coronel.
PROTEÇÃO AMBIENTAL
A Prefeitura de Aracaju alega que a área ocupada é de preservação ambiental. Vinícius Oliveira, da coordenação do movimento, questiona a presença de demais imóveis no perímetro, como um bar, uma marina e um stand para barraca de fogos. “Se é área de preservação ambiental porque então a Marina, que fica ao lado da ocupação, não foi notificada? Por que o estabelecimento, conhecido como bar do Camilo, também não foi notificado? E se é área de preservação ambiental, é legal organizar barracas de fogos no período junino no local?”, questiona Vinícius.
A BALA E O MILAGRE DE NATHANNELY
Na noite de sexta-feira, 11, uma abordagem da Guarda Municipal envolvendo cinco integrantes da ocupação, acusados de porte de substâncias similares à maconha e cocaína, por pouco não acaba em tragédia. A militante Nathannely Pereira dos Santos, de 18 anos, foi atingida no peito enquanto estava na cozinha da ocupação juntamente com seu filho de poucos meses de idade, que estava dormindo. Curiosamente, confusão não despertou a criança.
A Guarda Municipal afirma que efetuou disparos para cima, para conter o avanço dos ocupantes no momento da abordagem. Em vídeo publicado nas redes sociais, o médico plantonista que atendeu Nathannely na Unidade de Pronto Atendimento Fernando Franco, no Conjunto Augusto Franco, afirmou que se tratava “de um milagre”, já que a munição letal se alojou na região do externo e não penetrou a caixa torácica. “Se a bala entrasse pegava direto na aorta, seria fatal. É, a pessoa só morre quando é a hora dela”, afirma o médico. Em nota, a Prefeitura de Aracaju afirmou que recolheu as armas da diligência para a realização do exame de balística. Integrantes da ocupação acusam a Guarda Municipal de tentar reaver a bala junto ao responsável pela Unidade de pronto Atendimento e, desta forma, recolher uma possível prova revelada no exame de balística.
A militante foi encaminhada para o Hospital de Urgência de Sergipe (Huse) e logo depois liberada.
MANDADO, REINTEGRAÇÃO E POSSE
O efetivo de cerca de 500 homens da Polícia Militar estava a postos para o cumprimento do mandado de reintegração de posse nas primeiras horas da manhã do sábado, 12. O defensor público Alfredo Nikolaus, que acompanhou de perto a ocupação, alega que o cumprimento de reintegração de posse viola uma série de itens e regras do Direito Internacional.
“Há um provimento da Corregedoria Geral de Justiça de que deveria ter havido uma desocupação voluntária, o que não ocorreu. Em casos de desocupação forçada, como é o caso, não se pode determinar uma desocupação sem um lugar adequado. Observamos que o galpão que a prefeitura está oferecendo não é nada adequado. A Convenção Internacional de Direitos Humanos afirma que não se pode efetuar desocupação forçada em final de semana e isso não está sendo observado”, reiterou o defensor.
A assessoria jurídica tentou suspender o mandado de reintegração de posse na manhã de sábado, sem sucesso. Após uma série de tentativas de negociação, os integrantes decidiram por desocupar o terreno e se alojar no Galpão oferecido pela Prefeitura, d e forma provisória. “Nós estaremos nos reunindo na segunda-feira com o prefeito Edvaldo Nogueira, para encontrar uma alternativa a essas famílias”, afirmou o coordenador nacional do MTST, Guilherme Boulos, que estará em Aracaju e participará da negociação diretamente.
CENTENAS DE MARIELLES
A ocupação decidiu homenagear a vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, assassinados há exatos sessenta dias da publicação desta reportagem. Neste momento, centenas de Marielles e Andersons comemoram o Dia das Mães em um galpão localizado na Rua Acre, no Siqueira Campos. De acordo com o cadastro realizado pelo próprio movimento, cerca de 70% dos ocupantes são mulheres, mães em sua grande maioria. Que as balas que mataram Marielle e Anderson e, milagrosamente, pararam no peito de Nathannely, não mais encontrem os corpos daqueles que reivindicam direitos básicos garantidos pela Constituição Federal, como a moradia. As vidas, os sonhos e os suspiros de centenas de famílias não hão de caber num galpão na Rua Acre.