Jean de La Fontaine, poeta e fabulista francês que viveu no século XVII, dedicou as suas fábulas ao filho do rei Luís XIV, publicadas em 1668, todas elas compostas por histórias, cujos personagens principais são animais que se comportam como seres humanos, meio que o poeta e escritor encontrou para retratar, de forma disfarçada, uma corte onde a esperteza era condição essencial de sobrevivência.
A Cigarra e a Formiga é uma das fábulas atribuídas a Esopo – escritor da Grécia Antiga a quem é conferida a paternidade da fábula como gênero literário- e recontada em versos por La Fontaine. Na fábula, a cigarra quer aproveitar o tempo e passa os dias quentes de verão cantando, enquanto a formiga trabalha de forma diligente, reunindo alimentos para sobreviver no inverno e quando este chega a cigarra a procura em busca de um pouco de alimento para garantir a sua sobrevivência pedido ao qual a formiga responde, não sem um laivo de desprezo:
– Cantavas? Pois dança agora!
No mundo animal não existem vontades, existe natureza por isso a cigarra canta não como forma de escamotear a vida mas para garanti-la, ela canta “porque cantar parece com não morrer”.
Compondo a sinfonia da primavera as cigarras cantam entre os meses de outubro e novembro – e só os machos cantam – para atrair as fêmeas para o acasalamento, e com que força o fazem! Podem chegar a 120 decibéis de cantoria, altura bem maior por exemplo do que o barulho de uma grande avenida que atinge 80 decibéis. Mas o canto da cigarra não é um canto de preguiça ou de descompromisso, é um canto pela vida, é a garantia da sobrevivência da espécie. Respondendo a esse chamado, ao acasalarem, as fêmeas põem os ovos em troncos de árvores e morrem. Depois que os ovos eclodem, as ninfas, fase jovem da cigarra, descem, por fios de seda e se instalam no fundo da terra onde podem viver até 17 anos dependendo da espécie. A saída do solo é feita como um sinuoso balé que vem se desenhando das entranhas da terra, e elas o fazem em grandes quantidades em direção à luz por isso são tão numerosas quando aparecem. Na superfície a sua vida dura, no máximo, um mês. É um jogo perigoso mas inexorável. É sair das profundezas onde pode viver por até dezessete anos.
e deixar de existir como espécie ou sair, acasalar e viver apenas um mês e garantir o canto que dá voz à primavera, ainda que por tempo tão breve e saber que novas primaveras virão com outros cantos e outras cigarras num ciclo de renovação da vida. Associado às chuvas pela crença popular, o canto das cigarras traz esperança para o sertanejo pobre que ainda depende dos favores da natureza para uma boa colheita que também renovará a sua vida.
Na fábula, a cigarra é o exemplo a não ser seguido como se a ela restasse alguma coisa a não ser cantar. Como se a sua natureza fosse uma escolha e não uma determinação. A cigarra nunca vai poder ser formiga assim como a formiga jamais será cigarra. Aquela é solitária, esta é coletiva. A cigarra canta, a formiga, se não for rainha, trabalha de forma incessante a ponto de a bíblia hebraica referir-se a ela como exemplo no livro dos Provérbios de Salomão ao exortar “vai ter com a formiga ó preguiçoso!”. Apesar das suas diferenças ambas são importantes para o equilíbrio da natureza e há espaço para cada uma sem que necessariamente signifique que esta ou aquela tenha um papel mais digno na composição desse universo tão variado.
A fábula moderna é hoje explorada sobretudo nos quadrinhos quando são atribuídos aos personagens animais comportamentos e valores humanos para significar os nossos papéis ou a personagens super heróis para maximizá-los. É necessário porém respeitarmos a individualidade de cada um e jamais enquadrá-lo num modelo qualquer, sabendo que o canto da cigarra é a sua razão de existir e não um mero capricho. É um ato solitário para vencer a solidão. Talvez o preço seja muito alto mas “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.