Numa das mais belas passagens da Ética a Nicômaco, Aristóteles nos ensina, dentre outros aspectos, que a amizade nos aproxima do divino. Enquanto o mundo humano é caracterizado pelo limite da morte, da carência, da falta, o divino é a esfera da autarcia, da completude, da plenitude. Apesar dessa enorme diferença, algo nos cerca do divino: a amizade. Isto quer dizer que, quando temos amigos, desejamos para ele ou ela o mesmo que desejamos para nós mesmos. A condição da amizade é a igualdade, razão pela qual entre amigos só pode haver o bem querer e o bem fazer de forma livre e desinteressada, o que nos faz imitar o divino.

Foi essa experiência do divino que senti no último dia 28 de dezembro, por ocasião do lançamento do livro “Clio digital: memórias e histórias de Sergipe”, organizado pelo Prof. Antônio Lindvaldo Sousa, da UFS, que na ocasião homenageou o Prof. José Paulino da Silva, falecido no dia 30 de novembro de 2022.

A cerimônia, simples e tocante, bem ao gosto do Prof. Paulino, foi precedida por um cortejo de colegas que levaram alguns de seus objetos de memória, sob o som de um forró, que ele tanto apreciava. Na sequência, vários colegas e amigos contaram um pouco o que aquele pernambucano de Surubim tinha marcado suas vidas em terras sergipanas. Cada um tem um “causo” para contar do Professor ou uma história narrada por ele, sempre com graça, mas sem gracejos; com sabedoria, sem ironia; com delicadeza, sem pieguice. O Professor Paulino era assim: leve como um vento suave da manhã.

Enquanto se desenrolava a cerimônia, eu fiquei me perguntando quais os momentos em que o Prof. Paulino mais me marcou. Por uma questão de espaço, vou destacar dois.

Antes, porém, é preciso entender que o Prof. Paulino foi meu Professor de Seminário de Pesquisa junto ao Núcleo de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais da UFS, em 1992. No ano seguinte, fez parte a banca examinadora da minha monografia, intitulada “Poder local e relação de dominação: o caso de Itabaiana”, trabalho esse orientado pelo Prof. Ibarê Dantas. Entre 1992 até sua aposentadoria, fomos colegas do mesmo Departamento e sempre estivemos próximos. A última vez que nos encontramos foi no lançamento de meu livro “O eu em palavras”, no Museu da Gente Sergipana, um pouco antes da pandemia.

O primeiro aspecto que gostaria de lembra-lo, enquanto meu Professor, e que me recordo com muita vivacidade, foi que ele jamais alterou o tom da voz, a forma doce de se dirigir aos alunos e colegas, mesmo quando se tratava de temas delicados ou situações tensas. Tentava abordar o conteúdo de forma clara, pausada, sempre com a preocupação de transmitir o conhecimento. Do ponto de vista técnico, enquanto docente de Pós-graduação, o que ele mais insistia com os alunos era na elaboração de um texto final da disciplina: não se tratava de paper, tão em moda na atualidade, mas um “artiguinho”, assim, no diminutivo. O que isso queria dizer? Um texto com linguagem simples, de poucas páginas, que comunicasse ao grande público. Penso que esse era o seu grande mote: não adianta produzir uma ciência sofisticada que não saiba comunicar amplamente, ainda que seja numa linguagem acadêmica. Certamente ele conhecia a velha frase atribuída a Leonardo da Vinci: “a simplicidade é o grau mais elevado de sofisticação”.  Com ele, posso dizer com satisfação, aprendi um pouco a escrever “artiguinho” para jornal, como esse que o leitor tem sobre os olhos.

O segundo aspecto que guardo com muita alegria desse mestre da generosidade, foi por ocasião da minha defesa da monografia. Quem já passou por situação de avaliação como essa sabe que se trata de um momento tenso. Nessa pesquisa, tratei da relação entre Euclides Paes Mendonça e Manuel Teles, dois inimigos políticos de Itabaiana, que imprimiram uma administração coronelista num momento em que a cidade se urbanizava. Euclides soube como poucos fazer bom uso das transformações e novidades da vida urbana, a tal ponto que levou para a cidade a “modernidade”, ao seu modo, tornando-se popular e fazendo piadas de si mesmo. Não demorou muito para que elas ganhassem terreno fértil e imaginativo.

Foi nesse sentido que eu inseri numa nota de rodapé com duas piadas como exemplo de sua popularidade e ao mesmo tempo de domínio autoritário. O Prof. José Maria de Oliveira e Silva, que falou primeiro na condição de examinador, não gostou e disse que aquelas piadas depunham contra a qualidade do trabalho. Justifiquei que não se tratava de uma piada pela piada, justamente porque seria um adendo ao argumento central no corpo do texto. Na vez do Prof. Paulino me arguir, ele começou discordando do colega e registrando que achou poucas piadas; que se fosse ele, teria posto mais, e passou a contar outras piadas de Euclides e seu jeito autoritário de ser e viver a política na cidade. O auditório foi às gargalhadas. Aquele momento foi a oportunidade que ele encontrou para quebrar a tensão da defesa e instaurar um outro, descontraído e ao mesmo tempo produtivo em relação ao ciclo que terminava. Aprendi, com o Mestre Paulino a, em determinados momentos, o melhor é descontrair para a gente produzir.

Numa entrevista da Profa. Marilena Chaui a alguns colegas, ela evoca um texto de Merleau-Ponty que dá um exemplo entre o bom e o mau professor (“Percursos de Marilena Chauí: filosofia, política e educação” em Educação e Pesquisa. São Paulo, V. 42, n.1, p.259-277, 2016). Segundo ela, o mau professor de natação se joga sozinho na água e diz aos alunos “façam como eu”; o bom professor se joga na água com os alunos e lhes diz “façam comigo”. Isto implica dizer que a educação não é transmissão, muito menos adestramento, mas é formação. Aquela atitude do Prof. Paulino no dia da defesa de minha monografia muito me ensinou o valor da educação que forma pelo exemplo. Ou melhor, pelo bom exemplo.

Enfim, Prof. Paulino vive em nós, em cada um e uma que teve o privilégio de conviver com ele e com ele aprender a arte de educar: Tarefa de uma vida! Se a amizade é essa centelha do divino em nós, como nos ensinou Aristóteles, certamente o Prof. Paulino se eternizará em nós, feito luz que não se apaga.

 

 

Por: Prof. Antônio Carlos dos Santos

Professor de Ética e Filosofia Política da UFS e líder do Grupo de Pesquisa de ética e política da instituição.  

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