Há certa visão do senso comum de que os filósofos vivem com a cabeça nas nuvens, distantes das coisas terrenas, tal como Tales de Mileto que, de tanto contemplar as estrelas, num belo dia caiu num buraco enquanto caminhava. Muitos riram dele. Na verdade, as preocupações de Tales eram bem concretas: ele previu, por exemplo, baseado em seu conhecimento da natureza, que a safra de oliveiras seria excepcional, então adquiriu uma grande quantidade de prensas para a produção de azeite. Tales riu por último: pois, como proprietário dos meios de produção, muitos passaram a depender dele.
Evidentemente, não podemos reduzir Tales de Mileto a um protocapitalista. Mas essa anedota mostra certo equívoco dos que veem a filosofia como uma atividade inútil e acham que os filósofos são excessivamente teóricos, descompromissados, que raramente se engajam numa ação. Essa perspectiva, na verdade, não se liga apenas ao senso comum, mas deriva de certo tipo de filosofia. Há quem pense que a atividade filosófica pode ser encarada, por exemplo, como uma forma doutrinária de construção de sistemas.
Contudo, a própria reflexão filosófica, nasce de uma atitude radical, que consiste em tomar distância do senso comum para assumir uma postura crítica frente ao que a realidade apresenta. Trata-se aqui da busca de autonomia, ou seja, da capacidade de pensar por si mesmo. Nesse sentido, a chamada “teoria crítica da sociedade”, desenvolvida por autores como Adorno e Horkheimer, denuncia aqueles que encaram a atividade filosófica como teoria pura, desvinculada de fins e valores. Sendo assim, enquanto atividade crítica e reflexiva, comprometida com a autonomia do sujeito e com a verdade, a filosofia pode ser vista como uma arma de combate contra o irracionalismo bestial de certos doutrinadores e ideólogos comprometidos com a mentira.
Cabe lembrar quanto a isso que a palavra “compromisso” remete ao termo “engajamento”, que deriva do francês “engager”, que em português significa “se comprometer ou estar empenhado em uma causa concreta”. Acontece que nem sempre temos clareza de como agir na vida e se as posições que tomamos diante da realidade histórica estão corretas ou tem alguma legitimidade. Por isso, muitos preferem seguir a corrente, como uma grande manada.
Hegel dizia, que filosofia “chega tarde demais”. Em sua obra “Princípios da filosofia do direito”, ele escreve: “enquanto pensamento do mundo, ela aparece pela
primeira vez no tempo depois que a realidade completou o seu processo de formação e já está pronta e acabada”. Por isso, para Hegel, o símbolo da filosofia é a ave de Minerva (a coruja), que levanta voo ao cair do crepúsculo. Isso significa que mesmo quando as coisas não estão claras, diante do que a realidade histórica já apresentou, a filosofia pode nos ajudar a enxergar no escuro. Por outro lado, se a filosofia chega “tarde demais” é sinal de que o pensamento é impotente frente ao real. Mas, se for assim, caso assuma uma atitude meramente teórica, conforme uma postura conservadora como a de Hegel, só restaria ao filósofo contemplar a marcha inexorável da história, lamentar-se diante de uma procissão de horrores ou, pior ainda, justificar o que é irracional. Daí a famosa crítica de Marx: “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”
Ora, como mostrou o filósofo brasileiro Paulo Arantes, que apresenta um diagnóstico dos estertores do capitalismo, atualmente o processo destrutivo provocado por esse modo de produção vem acompanhado do achatamento do campo político, marcando assim o fim da era triunfante das expectativas.
Diante desse quadro, há quem diga que, devido à catástrofe iminente da extinção da espécie, a pergunta “o que fazer?” já não faça sentido. Ainda assim cabe perguntar: como ficar indiferente diante da crise climática? Como fechar os olhos para o que ocorre atualmente em Gaza? O que fazer quando a destruição de um povo está sendo televisionada?
Ora, assim como o aquecimento global, o que ali ocorre, ecoa pelo mundo todo, não como obra da natureza, mas como fruto de decisões de homens que seguem a marcha da autodestruição. Podemos jogar mil vezes uma pedra para o alto, como dizia Aristóteles, mas jamais podemos ensiná-la a não cair. Se chove, não podemos fazer com que não chova, o que podemos fazer é buscar um abrigo para não se molhar. Ou seja: se a natureza é da ordem do necessário, fazer escolhas pertence à política, portanto, ao campo do possível. O que ocorre em Gaza não caiu do céu, foi fruto de escolhas insanas. As piores escolhas possíveis. No mínimo, podemos dizer que hoje, enquanto filósofos e filósofas que não se contentam com lamentos, nos compete engajar-se de maneira crítica e reflexiva na disputa no campo das ideias, tarefa extremamente difícil, pois a política não é apenas o campo de escolhas possíveis, mas um campo de simulacros, onde a propaganda reverbera e a mentira tem pernas longas, como sabem doutrinadores fascistas de ontem e de hoje, que se deleitam ou “dão de ombros” diante da morte de crianças inocentes.
Nesta perspectiva, seria um erro entender a política como pratica feita na transparência da esfera pública, nos velhos moldes republicanos, ou seja, como pratica persuasiva da argumentação racional no sentido clássico e moderno que visa a verdade e o debate de idéias orientadas racionalmente. A política, para o bemol para o mal, é inseparável da sedução ou do plano dos afetos, da emoção. Como diz M. Mafesoli, “Convence-se pela emoção. O imaginário político trabalha a argumentação através de um arsenal de mecanismos emocionais, como os símbolos de um partido, as datas que devem ser comemoradas, os heróis e mitos que devem ser lembrados, os ritos que precisam ser atualizados”. É assim que no último feriado nacional, podemos notar os patriotas vestidos de verde e amarelo, clamando de joelhos pela volta do seu mito; em outros tempos, eles desfilavam ao lado de ícones gigantescos como patos amarelos e outros bonecos bizarros, entorno dos quais se deleitava a multidão. É assim que emerge o famoso Ze Ninguem de que fala Reich ou o pobre de direita que, em suas falas ameaçadoras, diretas, icônicas, bárbaras, mas artificiais, numa celebração entusiasmada e bestial da era da “pós-verdade” louva o boato, assassina reputações, nega a liberdade, a criatividade, amizade, assumindo uma postura grotescamente servil em relacão aos de cima enquanto pisoteam os de baixo. Uma vez entorpecidos com o veneno da mentira e da religião que lhes é conveniente, estes monstros morais se deleitam com as bombas que caem sobre crianças desamparadas e desesperadas, famintas e inocentes. Neste contexto, é difícil disputar as ideias, mas essa disputa não pode ser feita sem o apelo das imagens ainda que estas sejam chocantes, como chocantes são os filmes sobre o Holocausto
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