Eu tinha uns 13 anos quando meu pai bateu na porta da casa da minha avó. A figura paterna imaginária estava bem na minha frente e o fitei por cinco segundos para identificar que ali era o homem que contribuía com toda a genética que tenho. Aquele acontecimento, obviamente, é um marco na minha biografia. Mainha tinha recebido alta de um acidente trágico, na qual se recuperava de uma cirurgia de traumatismo craniano. A vida, em suas diversas nuances e curvas, me obrigou a amadurecer bem cedo, a assumir responsabilidades e a ser o tipo de gente que se importa com o meu bem-estar e o alheio.
Ele me pôs um nome oficializado em cartório e partiu para a Espanha, onde vive até hoje. Diante desta pandemia obtive uma graça, um milagre diria. Distanciados fisicamente desde sempre e pelas muitas diferenças e expectativas que trazíamos desta relação pai e filha, baixamos a guarda em busca de uma cura aos nossos corações já tão calejados. Quando fui observar através da constelação familiar vi que os traumas e queixas que tínhamos se repetem há três gerações. E estes compromissos ocultos vão se repetindo, se repetindo desde os tempos dos avós, até darmos um basta por tanta vitimização e sentido de caça às bruxas. Osho, filósofo indiano, diz em sua obra, o Livro do Ego: “leva muito tempo para perceber que a felicidade e infelicidade dependem de você, porque é muito confortável para o ego achar que os outros estão fazendo você infeliz.”
E esta colocação traz muitas outras possibilidades. Primeiro, a do apego. Nós não fomos criados, educados, socialmente inseridos em comunidades e famílias para sermos bichos soltos. Por isso temos sobrenomes. Por isso fui cobrada a infância toda – inclusive por mim mesma – para saber quem é e onde estava meu pai, afinal o espelho gritava: como assim não pareço com ninguém desta família?
O ego existe e sempre vai existir. Do contrário seríamos um Buda ou Cristo. Imaginem Jesus falando: “quem é meu pai e minha mãe? Aquele que faz a vontade do meu PAI é quem é meu pai e minha mãe”. Isso na frente de Nossa Senhora que o procurava diante do sumiço que ele tinha dado em casa. Deveria ter sido um escândalo naquela época. O ego diz que temos uma identidade, um crachá, uma profissão, que somos isso e aquilo, marido de fulana e filho de alguém. Referências, raízes e pertencimento. Mas daí delegar como nos sentimos é outra história. Quem irá recuperar a minha infância e dores que me foram impostas de maneira cultural? Ora, se na Arábia um homem pode ser esposo de mil mulheres, ok, faz parte do universo daquele local. Por aqui a coisa é velada porque não é socialmente aceito e isso causaria muitos conflitos. Já existem esses novos formatos e arranjos familiares, mas tudo ainda muito no esconderijo, no porão.
Estamos todos presos aos costumes e padrões herdados por nossos antepassados. O que é correto a se seguir? Para mim, o exame da consciência. Parece-me coerente fazer isso? Soa em consonância com a vida que desejo construir? Sim ou não, cada qual colhe os frutos das suas ações ou inações, mais cedo ou mais tarde.
Meu pai ‘bateu’ novamente à minha porta pelos meios online que dispomos. E gostaria de compartilhar aqui no Espaço Reflexão porque, desde a crônica passada, me referi ao perdão. Da liberdade e sensação de leveza que nos toma à alma. Há três anos não nos falávamos. E isso era de uma profunda dor porque não ter notícias dele me remetia às aulas de redação onde no Dia dos Pais éramos desafiados a descrever o nosso, a relação que tínhamos. Imagine ser traumatizada diante daquilo que mais gosto de fazer: escrever. Jamais saiu uma linha. E Auxiliadora, a professora amada com auxílio até no nome, repetidamente me salvava daquela emboscada e me dava outro tema de dissertação.
Foi aí que descobri que tanta gente passava pela mesma dor emocional. No único dia em que pisei em um orfanato eu lia o abandono parental nos olhos daquelas crianças. Eu me reconhecia de muitas maneiras. E em um momento de tantas perdas pelo globo, com tantas pessoas deixando o corpo físico e esta existência, nosso senso de humanidade precisa dar um salto triplo carpado. Sim, é um processo ágil de evolução, assim enxergo. E pela dor ao invés do amor, da compaixão, do perdão. A reconciliação ela é uma bênção quando se faz com o coração. Porque podemos discordar de quase tudo e ainda assim, sermos tolerantes, relevar e respeitarmos uns aos outros. Eis o convite crístico de fazer a vontade de um Pai infinitamente Maior do que imaginamos ser.
Pontuamos sermos muito bons, justos, mas nos recusamos a olhar com coragem e valentia para quem somos de verdade: crianças mimadas e carentes à espera de um ‘chocolate’. Eu entendi finalmente que não preciso da validação do meu Pai e nem ele precisa da minha. Somos o que somos. Eu mais racional e ele mais emocional. Eu vindo com dez teorias, pesquisas e práticas para argumentar meu ponto de vista. Ele explodindo ou amando na mesma intensidade para ambos os casos. Entender isso com maturidade e aceitar as pessoas como elas são e não, do jeito que gostaríamos que fossem, ah como é libertador.
A cura, em todos os níveis desta relação, finalmente chegou. Mas por 37 anos eu trabalhei duramente neste processo individual de burilamento. E isso vem a refletir em todos os relacionamentos pessoais e profissionais que desempenho. O que nos modera em convivência? Acima das diferenças superadas, é o respeito. Porque nenhum médico será capaz de acessar e tratar as emoções que geram as minhas doenças. Nenhuma vacina trará imunidade para os diversos ciclos e trocas que precisarei encarar para continuar na jornada evolutiva. Serei testada infinitas vezes enquanto aqui estiver. Se positivada ou negativada, vamos às repetições de aluna repetente ou aplicada. Nenhum remédio vai curar falta de sono ou apetite, ou a ‘fome psicológica’ quando os gatilhos para essas necessidades físicas, são, em verdade, necessidades espirituais e de fome por autoconhecimento. Ninguém, absolutamente ninguém, será capaz de curar outro ser. Nenhuma relação afetiva de operação ‘tapa-buraco’, que depois do primeiro frenesi perderá o frescor da descoberta e parte-se para a próxima (vítima) em busca de uma cura que só o próprio animal ferido é capaz de se sarar.
Nina, a minha felina, foi castrada recentemente. Revoltadíssima por agora ser uma gata donzela, arrancou os próprios curativos e os pontos da cirurgia. Ao ser medicada, vomitava. Deixei ela mesma se cuidar empoderada do jeito que ela é. Afetivamente ela se lambia e se auto cuidava. Está boa, saltitante e sem aquela agonia do cio. O instinto dela sempre a guia. E também sigo os meus instintos. O amor que podemos recolher em nós mesmos é fabuloso. Quem tem o poder de lhe tirar do eixo de paz a não ser você próprio? Compreender-se, lamber as próprias feridas e buscar a cura para as questões mais íntimas (aquela, da criança birrenta e mimada) pode ser a chave para muitas fechaduras trancadas no fundo da alma. Meu velho pai (ou jovem rsrs) planeja sua aposentadoria e viver, quem sabe, um período mais sabático e conciliador perto de mim e do meu filho. Neste universo de tanto investimento em sofrimentos, gostaria de compartilhar com meus queridos leitores a notícia da minha cura. Se cuidem, se amem e se protejam.