Por Henrique Maynart
Cajueiros dos papagaios em nome tupi, cidade-porto. Há exatos 162 anos e 360 dias, data de publicação desta reportagem, a nova capital do estado desembarcava na banda direita do Rio Sergipe para escoar o açúcar do Cotinguiba em direção ao mundo, mirando as ondas do mar. Os dados do IBGE apontam que cerca de 650 mil pessoas habitam o território da sobrevivência em exatos 3.140 quilômetros quadrados, formando uma perna de bailarina entre o Rio Vaza Barris, o Rio Sergipe e o mar aberto da Boca da Barra. Centenária, moderna e excludente, Aracaju baila no tablado da topografia oficial de Sergipe.
Dentre os 39 bairros de Aracaju, abordaremos a história, os dilemas e possibilidades do Santo Antônio e 17 de Março, o primeiro e o último, o Norte e o Sul, o início, o fim e o meio da capital sergipana.
Aracaju não nasceu da colina
O Santo Antônio surge antes de Aracaju, mas a colina não cabia nos planos da capital. O povoado de Santo Antônio do Cotinguiba estava sob tutela da freguesia de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, atual município de Socorro, até meados da segunda metade do século XIX. Registros do século XVIII já faziam referência ao povoado. Planejada para servir de escoamento à produção açucareira do Vale do Cotinguiba, Aracaju foi projetada para a planície, seu marco zero se encontra na Praça General Valadão. Tanto é que a Estrada Nova que ligaria a sede ao povoado, que atualmente é a Avenida João Ribeiro, só ficaria pronta dois anos depois. “Mesmo ladrilhando a Estrada Nova, a comunicação do bairro com a região central da cidade só se dará a partir de 1915, com a chegada dos bondes”, afirma o historiador Antônio Lindivaldo de Souza.
Professor Antônio Lindivaldo de Souza
Em 1862 é construído o primeiro cemitério da cidade, que viria a se chamar Santa Isabel em 1921, em homenagem à morte da ex-monarca. A Capela do Santo Antônio seria elevada à condição de paróquia em 1915. Assim como os demais bairros da Zona Norte e Oeste de Aracaju, o Santo Antônio serviria de abrigo aos refugiados do progresso, aos que não caberiam no Quadrado de Pirro.
Para o comunicador popular Osvaldo Neto, estudioso do bairro, a divisão social do Santo Antônio se dá entre os negros fugidos, povos remanescentes, operários e os casarões das famílias mais abastadas de Aracaju nas margens das avenidas. “Ao lado oeste moravam aqueles que fugiam da seca do Alto Sertão Sergipano. Já no lado leste, na fronteira com o Bairro Industrial, próximo a Mata dos Caboclos, a Matinha e as nascentes do Mané Preto, habitavam os negros libertos, os operários das fábricas do Bairro Industrial e descendentes de índios”, afirma.
Rua Muribeca, nº 4. O Grupo de Teatro Imbuaça chegou ao bairro em 1980, dois anos depois da fundação do grupo. Na segunda metade dos anos 80 eles se instalam na sede do Diretório Central dos Estudantes da UFS, retornando definitivamente ao bairro em 1991. O bairro de pouco mais de 12 mil habitantes está mesclado à história do grupo. O projeto Mané Preto, que oferece oficinais de música, dança e teatro para a comunidade, é um dos cordões umbilicais do grupo ao bairro. “Nós abrigamos peças e ações culturais em nossa sede, além de atender 25 jovens por ano no Mané Preto. Estamos com este trabalho há décadas”, afirma Lindolfo Amaral, integrante do grupo. O Imbuaça também ajuda na organização da fogueira de Santo Antônio, todo 13 de junho.
Ele lamenta o encolhimento de atividades culturais como a centenária Rua de São João, que vem perdendo espaço nos últimos anos, além do fechamento dos cinemas da década de 70. “O Cinema Atalaia e o Cinema São Francisco fazem muita falta na comunidade. A Rua São João diminuiu bastante o movimento nos últimos anos em virtude dos megaeventos que ocorrem na cidade durante os festejos juninos”, afirmou.
Ponto de partida
Uma alfândega, uma cadeia, uma mesa de rendas e um quartel. Este é o marco zero projetado pelo engenheiro militar Sebastião Pirro, sob influência direta das reformas urbanas em curso nas cidades europeias no século XIX, como a reforma de Paris. A largada da capital sergipana não partia mais da cruz e da igreja, assim como as cidades erguidas nos tempos da colônia como São Cristóvão e Laranjeiras, mas partia do comércio, das finanças, do exército e do cárcere.
“Cidades planejadas no mesmo período, como Teresina, traziam a cruz como ponto de partida, mas Aracaju trazia os símbolos do que representavam o progresso na época, dando à nossa cidade características modernas”, afirma Lindivaldo.
A partir da “Praça da Cadeia”, como era chamada a General Valadão, foi organizado o Quadrado de Pirro, que consistia em uma área de 1.188 metros divididos em 32 quadras simétricas, com ruas de 13 metros, avenidas de 20 a 25 metros, em três direções: norte, sul e oeste. Em suma, o Centro Histórico de Aracaju. A prática de aterramentos já era constante naquele período, sinal que o projeto de cidade não levava em conta os biomas presentes no território. Em artigo publicado em 2003, o professor Lindivaldo afirma: “Aterrou vales e elevou-se nos montes de areia. Grandes somas de dinheiro foram gastas com aterro e esgoto de terrenos baixos e úmidos, para que o projeto mantivesse a reta.” O caso do aterramento da Coroa do meio, nos anos 80, e do Jardins, no final dos anos 90, ilustram este histórico.
Quadrado de Pirro. Fonte: Expressão Sergipana
Cidade fora do quadrado
Entre 1900 e 1920, a população de Aracaju é duplicada. Chegavam à capital os refugiados da seca, da ausência de recursos. Para evitar que a “cidade planejada” fosse contaminada pela elevação populacional, o legislativo municipal aprovou os chamados “Códigos de Postura”, que consistiam em um conjunto de regras a serem seguidas por quem quisesse residir na área do Quadrado de Pirro. Prevendo requisitos de fachada e construção, como a exigência de casas de alvenaria, os Códigos de Postura aprovados em 1910, 1912 e 1926 constituíram uma “limpeza social”, de acordo com Osvaldo Neto.
“E quem é que tinha condição de construir casa de alvenaria naquela época sem ajuda do Estado? Os Códigos de Postura serviram pra expulsar a população mais pobre da área privilegiada”, ratifica Osvaldo.
Excluída do quadrado, restava ao setor mais espoliado da população o que o historiador Fernando Figueiredo Porto nominou de regiões do “arrebalde”. O “arrebalde” compreendia as regiões do Morro do Bomfim – na Rodoviária Velha -, no Carro Quebrado, atual São José, no Aribé, atual Siqueira Campos, no Santo Antônio, e demais territórios da Zona Norte e Oeste, a coxa da bailarina de Aracaju. O Morro do Bomfim era o ponto mais próximo da região central de Aracaju a acolher os refugiados do Código de Postura. Após ampla campanha, sob alegação de combate à prostituição e à delinquência, o Morro do Bomfim sofreu um despejo em meados da década de 50, no governo de Leandro Maciel, que desocupou cerca de 1200 casas. Seus refugiados subiram o morro em direção aos bairros Cirurgia, Getúlio Vargas, Siqueira Campos, Cidade Nova, dentre outros.
Nas costas do novo bairro
Um pulo de 60 anos no tempo. Aracaju, 17 de março de 2012. O então prefeito Edvaldo Nogueira (PCdoB) inaugura o mais novo bairro da cidade nas imediações do Santa Maria, na Zona Sul. Cerca de 3.500 unidades habitacionais construídas em parceria com o Governo Federal. Sem creche, sem esgotamento e macrodrenagem, sem Unidade de Saúde, sem escola e com pavimentação parcial. De acordo com Karina Drumond, diretora do Conselho das Associações de Moradores dos Bairros Aeroporto, Jabotiana e Zona de expansão de Aracaju (Combaze) o bairro não foi entregue nas condições ideais.
“Foi legalmente autorizado, mas não atendia a exigência do governo e a segunda etapa não tinha esgotamento, drenagem e água. Até hoje a segunda etapa do 17 de Março não tem esgotamento”, denuncia.
José Firmo, integrante do Fórum em Defesa da Grande Aracaju, atenta para os impactos socioambientais da construção do bairro. “O 17 de Março foi construído numa região frágil, porque é uma região de nascente, o que é preocupante. Aquele não seria o local ideal para construir um bairro.”
A Escola Municipal de Ensino Infantil Dr. José Calumby Filho foi inaugurada em junho de 2016. De acordo com informações da Secretaria Municipal de Educação (Semed), a creche atende 200 crianças no bairro. O morador do bairro 17 de Março e militante do Movimento de Luta Por Moradia Erílio Bispo, rebate este dado. “Hoje nós temos no máximo 180 crianças atendidas na creche, que é um número grande, mas que ainda não atende a demanda”.
O bairro não conta com uma Unidade de Saúde até então. A comunidade é atendida nas unidades do Santa Maria e Santa Tereza. “Tivemos que ir á Justiça em 2015 pra garantir que o poder público municipal se comprometesse em construir uma Unidade de Saúde no bairro”, alega Karina Drummond. A Secretaria Municipal de Saúde de Aracaju (SMS) comunicou à reportagem que já estão em curso as obras da Unidade de Saúde, orçadas no valor de R$ 1.500.841,74, sendo que R$ 700 mil deste montante vindos do Ministério da Saúde.
Mão de obra local
“E quem é que trabalha nas obras do bairro? As construtoras e empresas já chegam com equipe formada, elas não aproveitam a mão de obra da comunidade, com tanta gente desempregada no bairro querendo trabalhar, querendo oportunidade. A gente acha isso errado”, afirma Erílio Bispo.
A assessoria da SMS afirma que o projeto da maternidade do bairro está sob análise da Emurb. A previsão da abertura de licitação é para fevereiro de 2019, se todos os trâmites seguirem sem contratempos.
Erílio também demonstra preocupação com as obras do Canal do Santa Maria. “A gente vê a obra andando em ritmo de tartaruga e fica preocupado, porque está chegando a época de chuva e ninguém quer ficar debaixo de lama”, lamenta. Ele também ressalta a imensa cratera formada no trecho de ligação do 17 de Março ao Santa Maria, construído há poucos meses. “Mal ficou pronto o trecho de ligação, houve um acidente e uma cratera grande ameaça as pessoas que passam por lá, os carros, os ônibus”, afirma Erílio.
Cratera no trecho de ligação entre o Santa Maria e o 17 de Março
Do Bomfim à Mangabeira
A mangaba, fruto símbolo de Sergipe, dá nome a uma ocupação de 2 mil barracos de lona que se encontra nas imediações do 17 de Março o Recanto da Mangabeira. “Assim como o Morro do Bomfim, lá na década de 50, a Mangabeira não precisa de remoção e sim de políticas públicas de acolhimento”, afirma José Firmo, do Fórum em Defesa da Grande Aracaju. “Nós clamamos ao poder público que olhe para aquela comunidade e que uma solução seja encontrada por ali”, apela Karina, do Combaze.
Além da Mangabeira, o bairro conta com a ocupação 17 de Dezembro, que conta com 43 famílias, e a ocupação Terra Prometida, que conta com 148 famílias, de acordo com informações do movimento Luta Popular. Estas ocupações tiveram suas reintegrações de posse suspensas por 30 dias para negociação do cadastro do auxílio-moradia.
Ocupação Recanto da Mangabeira
Dos Códigos de Postura ao Plano Diretor
Diferente dos Códigos de Postura do início do século XX, que eram organizados expressamente para manter a parte indesejada da cidade fora do quadrado planejado, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) é um instrumento legal que deve planejar e ordenar o crescimento urbano para garantir o direito à cidade. O último PDDU da capital é do ano 2000, outro Plano deveria ter sido encaminhado e votado na Câmara de Vereadores de Aracaju em 2010.
“Estamos com oito anos de carência, é um absurdo”, lamenta José Firmo. Uma versão do Plano fora aprovada em 2012, mas o projeto foi suspenso pela Justiça. Em 2015 o prefeito João Alves chegou a organizar as audiências e consultas nos territórios, mas não apresentou nenhum projeto ao Legislativo Municipal. “Precisamos de um Plano Diretor que atenda aos interesses dos mais pobres, que proteja os biomas como o manguezal, as lagoas naturais, as dunas, que não atenda exclusivamente aos interesses da especulação imobiliária. É lei, o município é obrigado a ter”, ratifica Firmo.
Por dias melhores
Centenária, moderna e excludente, Aracaju precisa acolher os povos do arrebalde, das ocupações populares e remanescentes. Que a diversidade, a dignidade e a fartura cheguem aos que não couberam, não cabem e não caberão nos Quadrados de Pirro que rondam a perna de bailarina na borda direita do Rio Sergipe.