“O segredo de uma boa velhice não é outra coisa senão um pacto honrado com a solidão.” – Émile Faguet
1º Dia – Abro os olhos e a claridade que invade o quarto me informa que o dia está começando, com o sol se levantando cedo como acontece em pleno verão, quando os dias são mais longos que as noites e tenho portanto mais tempo para concorrer com a solidão, já que à noite ela dorme comigo. Estou tentando manter um pacto honrado com ela desenvolvendo hábitos menores já que não tenho o poder de me ocupar com a criação de luz e de trevas e de fazer a separação entre elas. A luz já está criada e as trevas também.
A luz produz o desejo de fazer, de movimentar-se e faço alongamentos para que o corpo responda positivamente às dores que se multiplicam se eu o mantiver em repouso, o que me parece ser uma grande ironia da natureza. O repouso do guerreiro necessita da batalha diária do movimento. Mas não estamos em guerra, tudo isso são apenas exageros de expressões. Depois de movimentar o corpo é preciso alimentá-lo já que não possuo a característica das plantas de utilizar a luz como fonte de energia para o próprio corpo, o que me leva a duvidar de que o homem é o senhor absoluto da natureza. Tudo é feito vagarosamente pois disputo o tempo com o próprio tempo e ele sempre ganha de mim.
Platão concebe o tempo como uma aparência mutável e perecível de uma essência imutável e imperecível. Kant afirma que o tempo é uma diminuição. Sem querer me comparar nem de longe a nenhum desses filósofos e não possuir o dom de filosofar, acho que o tempo é o depositário da memória. Nele estão guardadas todas as nossas lembranças. A velhice é um tempo de lembranças. Curiosamente as
mais remotas têm precedência sobre as mais recentes talvez porque o tempo, esse demiurgo, tenha o cuidado de fazer preservar a memória das lembranças mais agradáveis. Por isso esquecemos o ontem tão comum e reavivamos os dias longínquos sempre tão coloridos de saudade.
Felizmente, disponho de uma profusão de livros que são companhia permanente e que distribui o meu tempo entre mundos vários, vidas diversas, lugares remotos, histórias fantásticas e experiências extremamente ricas. Informações da vida que corre lá fora também chegam de diversas formas e mal tenho tempo (mais uma ironia!) de checá-las já que as Fake News impregnaram esse rico mercado de informações.
A pandemia limitou as saídas. É tempo de recolhimento, de meditação.
E foi tarde e manhã, o primeiro dia.
As noites não aparecem na narrativa bíblica. Elas não contam.
2º Dia – Desperto um pouco confusa e não vejo a luz do sol entrando pela fresta da janela o que significa que tive mais uma noite insone. Levanto-me com cuidado para não tropeçar em alguma coisa e cair, pois já não caio e me levanto com a mesma agilidade de outrora e uma queda nas atuais circunstâncias pode ser cruel. Vou até a janela e nada vejo e me dou conta de que esse é ainda o segundo dia quando foi feita apenas a separação entre as águas debaixo do firmamento. Hoje o dia será ainda mais longo pois me roubou o tempo da noite que não conta, e fazer tudo devagar, devagarinho, como na música, ajuda nessa medição de força na qual já entro perdendo. Vou até a cozinha, cúmplice dos dias, e começo a cortar as frutas que degustarei ao longo do dia e fico a imaginar como seria bom se eu tivesse a forma de passarinho (a alma já tenho!) pois estaria a cantar pra saudar com alegria a alvorada ao invés de querer apressar a sua chegada. Se passarinho fosse, gastaria o meu tempo entre uma flor e outra, entre um canto e outro, beirando as janelas, pousando em árvores, às vezes em bando, às vezes sozinho mas sempre voando por cima da beleza. Nada de me debater…
Como ainda não é dia claro pego o meu caderno mágico (que agora se chama tablet) e vou jogar paciência já que a leitura de um livro requer a luz da natureza e o caderno mágico tem luz própria. Descobri que a paciência não tem esse nome por acaso, mas descobri sobretudo que depois de muitas horas de jogo você consegue ganhar quase sempre e que isso me redime já que o meu limite para frustrações anda muito estreito. Já me frustrei demais ao longo da vida e agora fujo de jogos que frustrem mais que me aprazam. Outro nome para este jogo é Solitário. Não é mera coincidência.
O livro físico pra mim tem cheiro, textura, ilustrações e degusto cada uma dessas qualidades com voracidade. Assim, antes de começar a leitura, eu o cheiro, toco, folheio, deslizo as mãos pelas letras como se as acarinhasse, passeio com os dedos pelos pequenos relevos como a senti-los e todo esse ritual é uma preparação para a leitura que virá em seguida. O toque, pra mim, é um dos sentidos mais poderosos já que não possui um órgão específico para exercê-lo. Todas as regiões do corpo humano apresentam receptores que nos permitem ter a sensação de toque direto ao cérebro e saber se, por exemplo, algo é áspero ou macio. Sou sensível também ao toque humano uma das coisas que a solidão me rouba. Poderia ter um animal mas tenho a impressão que o seu toque apenas aquece e quero mais do que apenas calor. A leitura me lança pra fora de mim mesma. Um bálsamo!
Nem percebo o passar das horas…
E foi tarde e manhã, o segundo dia.
As noites não estão registradas.
3º Dia – Acordo com o barulho da chuva lá fora caindo como se houvesse um dilúvio, com raios e trovões ribombando como se quisesse deixar muito claro o poder da natureza em relação à pequenez dos homens sempre tão arrogantes (que rima perfeitamente com ignorantes) na medida em que ignora tantas evidências de uma força maior que impõe os rumos da humanidade a despeito de toda a nossa vaidade. E me dou conta de que nesse dia, Ele está ajuntando as águas debaixo do céu num só lugar (mares) e separando a parte seca (terra) como descrito no Livro de Gênesis.
Hoje é um dia para mergulhar nos mares profundos da informação e da desinformação e é preciso separar água e terra. Mas tem sido cada vez mais difícil fazer essa separação e somos tentados a ignorá-las todas, para perceber logo em seguida que precisamos delas. Afinal, “navegar é preciso/ viver não”. Enquanto navego nesses oceanos de informações várias e diversas me dou conta que a imprevisibilidade da vida conduz a minha nau “por mares nunca dantes navegados” e que um mundo novo (nem melhor nem pior, apenas diferente) está acontecendo lá fora. Um mundo no qual a ciência é capaz de produzir respostas quase imediatas às suas necessidades mas no qual os seres humanos (sapiens sapiens) escolhem soluções mágicas em cujo altar milhões de vidas são sacrificadas numa inquisição baseada em vontades, algumas das quais em nome de Deus (como acontecia na Idade Média!). Retrocesso??!!
Depois de mergulhar profundamente nesse mundo da informação tentando não me afogar na desinformação penso que é hora de emergir à parte seca que Ele chamou de terra pois nem só de leituras vive o homem. Ele vive também de pão e é preciso alimentar o corpo o que me coloca diante de um dilema: Fazer ou não fazer? Opto por não fazer e entro em contato (sem nenhuma palavra, sem nenhum som) com mais uma telinha mágica que por artes da virtualidade (que não tem nada a ver com virtude) faz chegar até mim a comida. Deliciosa, ou melhor Delivery.
E foi tarde e manhã, o terceiro dia.
As noites são povoadas de sonhos e pesadelos. Serão os mares ou a terra que as produz?
4º Dia – Povoada, a minha noite foi muito agitada e acordo como se estivesse cansada. Percorri uma maratona de sonhos e pesadelos e penso sempre que deveríamos ter apenas sonhos bons o que seria um grande refrigério para as mentes irrequietas. Recorro ao Gênesis e lá está escrito que nesse dia Ele fixou os luzeiros no firmamento dos céus (assim mesmo, no plural) para separarem o dia e a noite e serem sinais para as estações, dias e anos.
As estações andam um pouco confusas apesar de continuarem no mesmo lugar os luzeiros por Ele criados, e me sentindo em dia de primavera, tomo a decisão de cuidar das plantas, esse ato solitário mas extremamente
gratificante. Converso com cada uma delas e felizmente nenhuma me responde o que atesta a minha relativa sanidade. Revolvo a terra, retiro as folhas secas, cheiro as suas flores apenas para sentir a diferença do perfume que cada uma exala. Não quero o seu néctar. Não sou abelha, apenas abelhuda e com uma curiosidade quase febril vou desvelando cada uma para em seguida aspergir sobre elas a água benfazeja, qual batismo que redime o homem que nele acredita. Elas me respondem agradecidas, com um sorriso faceiro que só eu vejo. Percebo que uma delas pisca. Retribuo a gentileza.
Resolvo plantar. Plantar é um ato de criação e lembro do feijãozinho que as crianças “de antigamente” colocavam no algodão molhado para ver e acompanhar o processo de germinação. Elas não sabiam mas estavam vendo a vida brotar. Precisamos de vidas brotando ao invés de vê-las murcharem. Preparo um vaso especial e nele planto uma profusão de lavanda. Li num artigo escrito para uma tese de doutorado que ela tem um poder de diminuir a ansiedade e como sou ansiosa vou cultivá-la em profusão. Quem sabe se aumentar o tamanho do vaso… Ou seria necessário um canteiro para o meu caso? Talvez uma plantação inteira. Fora de questão. Moro num apartamento.
Ligo a televisão. Preciso ouvir vozes, (não, não é esquizofrenia) sinto uma grande necessidade de interagir mesmo que seja mais uma interação virtual. Com apenas um clique a televisão fala e agora começo a perceber que o bom dia tão caloroso do apresentador faz alguma diferença. Respondo com um certo entusiasmo e começo a estabelecer um diálogo solitário porque o aparelho de televisão não me permite o toque humano e o apresentador não leva em consideração as minhas opiniões. Tenho que ouvir as dele mas ele não ouve as minhas e isso definitivamente não é bom apesar de ser esta uma prática vigente mesmo nas relações presenciais. Sem via de mão dupla o diálogo vira monólogo. O monólogo não me alimenta. O dia corre lentamente…
Respondo ao boa noite do apresentador do programa de TV e me sinto reconfortada. Finalmente dialogamos, ainda que seja com um ponto final.
E foi tarde e manhã, o quarto dia.
Mesmo separando o dia e a noite, as noites continuam sendo ignoradas.
Ainda vou descobrir o porquê. Ou será mistério?
5º Dia – A algaravia dos pássaros acaba me despertando de uma certa letargia e percebo que uma manhã radiosa está sendo tecida lá fora como um presente com laço de carinho e cheiro de afeto. Lembro-me que nesse dia Ele povoou as águas de enxames de seres viventes e as aves para voarem sobre a terra, sob o firmamento dos céus; talvez por isso elas estejam produzindo um charabiá tão intenso.
É preciso ser muitos para estar sozinho. Tenho que me reinventar a cada dia e felizmente os seres humanos dispõem de uma variedade de possibilidades desde que se disponham a desenvolvê-las. Quando criança e adolescente costurava por obrigação, todos os dias, dias e noites e isso não me causava nenhum prazer. O tempo entre costuras que me aprisionava no passado hoje me liberta (mais uma ironia da vida!), por isso vou povoar o meu dia de retalhos não tão pequenos como os que eram utilizados antes, pois as colchas produzidas anteriormente com pedaços disformes, sobras das diferentes costuras, com estampas, tonalidades e tamanhos variados foram substituídas pelas facilidades da vida moderna, pelo patchwork que harmoniza cores, formas e tamanhos. Mas essa facilidade me rouba o tempo que poderia ser consumido pelas dificuldades, quem diria!
Assim enquanto as aves vão se espalhando com a força do sol que se levanta para se colocarem cada vez mais alto, vou espalhando os meus pedaços sobre a mesa para construir um desenho geométrico, harmônico como gostaria de harmonizar a minha vida. Os pedaços da vida são mais difíceis de serem costurados como gostaríamos que fossem; com beleza, sutileza, sem ranhuras de rancores, sem medos infundados, sem cantos escuros. Sem avessos?
Cantar é uma forma de colocar pra fora as emoções que se encontram contidas dentro de nós já que não fluem na direção do outro e por isso nos engasgam. Os psicólogos recomendaram cantar nessa pandemia que nos obrigou a ressignificar o tempo e tantas outras coisas. Sempre cantei. Herança da minha mãe, como a costura. Gosto das músicas antigas, elas nos remetem à infância, tempo de alegrias simples e despretensiosas. Gosto também do canto coral que se desenvolve necessariamente com a participação do outro, e sou um ser plural apesar de estar sozinha. Gosto
da música gospel, sobretudo as mais antigas que liberam os sofrimentos, os medos e lançam ecos de liberdade e resistência. Resistir é preciso, desistir nunca! Por isso acompanho musicalmente a construção do patchwork, que faço em ritmo lento porque não quero acelerar o tempo. Preciso dele como aliado.
Construir consome o tempo. Ou será o tempo que nos consome?
E foi tarde e manhã, o quinto dia.
As noites ainda não foram decifradas.
6º Dia – Mais do que nunca sinto falta da presença física de alguém. O contato humano me alimenta e me definha quando escasseia. Recordo que, no sexto dia, Ele ordenou que a terra produzisse seres viventes e fez o homem à sua imagem e semelhança e lhe deu o domínio sobre todas as coisas. Deu a todos o poder sobre todas as coisas? Onde estão os meus semelhantes? Eu os procuro e vejo que muitos foram desabrigados pelas chuvas intensas que fizeram crescerem os rios, se avolumarem as águas antes mesmo que eles tivessem tempo de guardar as poucas coisas que conseguiram juntar ao longo das suas vidas que agora precisam ser salvas. Outros semelhantes estão abatidos pela seca que fez minguarem as suas plantações e anuncia a falta de água e de comida, coisas tão básicas para tantos enquanto outros se alimentam da fartura de vaidades. Nessas ocasiões sempre penso se não seria possível um pequeno movimento Dele para distribuir essas águas de forma equânime. Mas não existe equanimidade sobre a terra. E nos céus? Então me lembro da ganância das devastações e lembro também, com muita inquietação, que quem paga o preço dessa desnatureza não são os responsáveis por ela. Parece que nem mesmo a natureza é boa em fazer distribuição de renda.
Pensando sobre essas coisas me vem à mente o famoso afresco sobre a criação de Adão, concebido por Michelangelo no teto da Capela Sistina no Vaticano, que mostra os dedos de Deus e de Adão quase se tocando sem no entanto fazê-lo. E fico a meditar sobre o que teria acontecido com a humanidade se esses dedos tivessem se tocado. Seria diferente?
Como a carência afetiva é muito grande recorro aos livros como sempre faço, afinal o homem já está criado e com ele o mundo da escrita, desde as formas mais primitivas quando eram apenas desenhos até as mais sofisticadas formas de linguagem moderna. A biblioteca de Nínive construída no século 7 a. C. guardava um acervo de 25 mil placas de argila com textos em cuneiforme que levaram milhares de anos para serem decifrados. Hoje dispomos de acervos imensos em nossa própria língua para degustarmos o quanto quisermos. O prato é saboroso, difícil mesmo é fazer as escolhas.
Escolho sempre dois: um mais denso e outro mais leve que alterno quando o volume de informações ultrapassa a minha capacidade de absorção seja intelectual, seja emocional. Afinal, os livros liberam as nossas emoções mais profundas ainda que nesse estágio da vida elas estejam mais controladas apesar de estarmos mais frágeis. Os olhos também não ajudam muito. Há algum tempo estou mais pra coruja do que pra águia.
A minha fragilidade denota a minha criação. Eu não toquei o dedo de Deus.
E foi tarde e manhã, o sexto dia.
As noites continuam inescrutáveis.
7º Dia – Espreguiço-me lentamente para movimentar os músculos endurecidos, ativar a circulação sanguínea, diminuir a tensão e avisar ao cérebro, esse controlador austero, que não estou mais em repouso. Se bem que, segundo a Bíblia, terminada a sua obra, no dia sétimo, Ele descansou.
A música é a arte de combinar os sons e o silêncio. Ela favorece o descanso. Como esse é o dia estabelecido por Ele para o descanso de cada um (todos os outros são para se cansar?) penso que a música é um excelente veículo para promovê-lo. Todos os instrumentos mágicos de que disponho são capazes de me oferecer uma infinidade delas e preciso apenas selecionar o meu gosto diante de uma profusão de ofertas, característica definidora dos dias atuais. Como um certo príncipe, (ainda que pequeno), afirmou é preciso ritos e ritualizo a minha busca para encontrar o que quero. Quando finalmente encontro, deleito-me. À medida que a música vai preenchendo os meus silêncios a minha alma de passarinho vai voando pelo mundo da
fantasia essa coisa tão necessária para nos alevantar de uma realidade que tem pesado tanto sobre cada um de nós. Não me considero mosca, por isso busco sempre a beleza das formas, a harmonia dos diferentes, o perfume de uma presença, o abraço que aquece. O lixo da intolerância não me atrai.
Saciado o apetite musical é o momento de ouvir os silêncios nesse dia dedicado à contemplação já que todos os demais foram criados para o fazer das coisas. Concentro-me e percebo que uma babel construída lá fora confunde os homens. Eles não sabem o que fazem. Eu também não.
“Ele” viu que tudo era bom.
Nesse dia não houve tarde, nem manhã. E a noite, onde ela está? Ela faz parte do mistério das coisas que ainda não foram decifradas!
O mais é solidão…
Deixar um comentário