‘- Senhor, Senhor!

– Oi, cara.

– Coroa.

– Como assim, coroa? Eu sou bem mais novo, se alguém aqui merece ser chamado de coroa é você.

– Desculpe. O senhor me propôs um jogo. Escolheu cara e eu fiquei sem alternativa. Tive que escolher coroa.

-Não é nada disso. Cara é uma forma de tratamento. Quando eu falo com você significa que você é o cara, quando você fala comigo esse cara sou eu.

– Mas, dessa forma mesmo? O senhor se refere a mim como se eu fosse apenas uma parte do meu corpo. É como se me chamasse de braço ou cabeça. E o meu todo como fica? Sabia que somos seres complexos?

– De onde você vem cara? Estamos no tempo da simplificação. Você sabia que existiu um tipo meio maluco que misturava asteroides com raposas e rosas e disse que a linguagem é uma fonte de mal entendidos? Pois é, alguém levou ele a sério e agora todo mundo simplifica. Simples assim.

– Quero fazer-lhe uma proposta: podemos prosseguir nessa jornada juntos? Estou há bastante tempo nesse caminho de Damasco à espera de uma revelação que me mostre o que devo fazer, aonde devo ir mas constantemente me confundo. Como Saulo, o senhor sabe.

– Nunca ouvir falar nesse tal de Saulo e muito menos em algum lugar chamado Damasco. Pelo menos não por essas bandas e tampouco nessa direção. Vamos fazer o seguinte: o segredo é simplificar já que pretende que andemos juntos. Vamos estabelecer regras, elas são muito importantes. Quando tiver tudo bem eu posiciono o meu polegar para cima e quando for sujeira inclino o polegar pra baixo, certo?

– De acordo. Como no Circo Máximo de Roma. O Imperador usava o polegar para indicar morte quando o colocava para baixo e ao contrário, quando queria salvar o condenado.

– Não sei nada desse circo. Hoje quem mora lá é o Papa, uma espécie de Imperador, pois do menor Estado do mundo governa 2,3 bilhões de almas

ao redor desse vasto mundo. Não usa o polegar pra mandar matar ninguém. Usa as redes sociais para absolver das condenações, inclusive da condenação eterna. Sabe, sou cristão.

– Li em algum lugar que as religiões reveladas são responsáveis pelos maiores conflitos ao redor do mundo em pleno século XXI. A religião hoje está tão presente como na Idade Média, se bem que o século das luzes promoveu muita revolução e muitas mortes também.

– Não sei dessa coisa de revelação não, sou cristão…Já que decidimos caminhar juntos quero esclarecer uma questão. Sou uma pessoa muito franca e direta por isso não levo desaforo pra casa. Comigo é olho por olho dente por dente.

– Mas o senhor acabou de me dizer que é cristão. Essa citação é do Antigo Testamento e diz respeito a regras e costumes do povo judeu de cerca de três mil anos atrás. A regra do cristianismo explicitada no Sermão da Montanha é: a quem te ferir numa face, oferece a outra; a quem te arrebatar o manto, não recuses a túnica.

– De onde você tá vindo cara? Manto está totalmente fora de moda. O grande negócio agora é a Bíblia.

– E sobre o caminho que procuro, o senhor pode me informar alguma coisa? Eu chamo de caminho de Damasco mas pode ser o Caminho de Emaús, ou ainda o de Santiago de Compostela. O que o senhor sabe sobre isso?

– Não sei nada. Também nunca pensei sobre isso. Essa história de caminho só me recorda aquela novela da Glória Perez O Caminho das Índias. Por sinal, grande campeã de audiência.

– …

– Sabe, tio, acho que você gosta de complicar as coisas. Bora simplificar, é mais fácil.

-Tio? Então somos parentes? Sou do ramo que pertence à linhagem materna ou à casa de seu genitor? Temos ancestrais comuns?

– Não sei o que é ancestral mas sei que tio pode ser o irmão do pai, da mãe, o vizinho mais velho, o pai de um amigo, o pai da namorada, o professor e por aí vai.

– A genética então fez novas descobertas, temos novos avanços nessa área. As relações de parentesco foram alteradas?

– Também não sei pra que serve a genética mas está anoitecendo e precisamos parar pra descansar se quisermos caminhar em direção… aonde mesmo?

– Não sei. Essa que é a questão. Mas, se mesmo Shakespeare, o grande escritor que era, se perguntava sobre “a direção”, quem somos nós para não fazê-lo? Vamos deitar a nossa cabeça em algum lugar, pois numa noite parecida com essa o Filho do Homem, apesar de ter tantos seguidores, disse que não tinha um lugar onde repousar a dele, por isso não vamos nos afligir. Um Astrolábio nos seria útil pois nos daria a posição das estrelas e nos deslocaríamos com mais precisão.

– Quem é Astrolábio? Desconheço essa pessoa, inclusive acho o nome bem esquisito, não se parece em nada com os habituais. Agora as pessoas usam muitos Ypsilons, muitos dablius, muitos kas e, na dúvida, dobram as consoantes. Por falar em nomes quem vai nos salvar é o Google, sabe tudo e não esconde nada de ninguém, nem o pulo do gato, como fazem os mestres nas escolas. Simples assim.

– Quer dizer que não existem mais mistérios sobre as estrelas?

– Nenhum. O homem já pisou na lua, visitou alguns cometas, também visitou planetas como Mercúrio, Vênus, Júpiter, Saturno e até Plutão que perdeu um pouco o prestígio depois de descobrirem que esse aumentativo era usado para esconder o seu tamanho tão pequeno.

– E os mares? São tão insondáveis… Acho-os imensos e sempre penso que muita coisa se esconde nas suas profundezas. E o mistério do triângulo das bermudas, já desvendaram? É algo que me fascina…

– Sem angústias, cara. A questão dos triângulos já está resolvida por um cara chamado Pitágoras. Esse nome eu decorei porque é como se chama o cachorro da minha vizinha. Aliás, cachorro é um animal que está muito em moda e os seus donos capricham muito nos nomes às vezes mais até do que no nome dos seus descendentes. Quanto ao mistério, depois que surgiu um tal de Sherlock Holmes tudo se resolve. Ele deixou um método infalível para desvendar todos eles. O mais a gente entrega a Deus. Sabe como é, eu sou cristão.