Aurora havia me dado um relógio dourado naquela tarde de visita ao asilo. Aos domingos, o grupo do gen3, adolescentes e crianças fazendo serviço social, ia ao asilo. Aurora logo me chamou atenção. Ela tinha um sorriso espalhafatoso e as melhores histórias. Logo nos tornamos amigas. Eu levava bolo sem açúcar, porque ela era diabética, e em troca ela me contava suas aventuras da juventude. Sempre gostei de ouvir anciões. Minha amiga Daniele Marques e eu vivíamos enfunadas nas novenas e éramos as queridinhas dos vovôs. É que os idosos te presenteiam com comidas muito boas e têm lições de vida preciosas, então você veja que era uma amizade por interesse.
Voltando ao relógio de Aurora, a mais doce de todas as vovós dali, ela me relatou porque me daria aquele bem de família. “Está vendo essa contagem em bom som do tic tac, minha filha? É para te lembrar que o tempo é mais precioso que o ouro que banha este lindo relógio”. No auge dos seus 84 anos, lúcida e corajosa, Dona Aurora havia sido presenteada pelo marido com aquela joia.
Eu sorri sem entender, mas anotei no meu diário para refletir. Ela dizia que sua doçura era proveniente do açúcar no sangue. Mas, quando contava os caminhos que trilhou, sempre tocava na importância do tempo, já que há dez anos residia ali. E não tinha ‘tempo’ ruim para Dona Aurora. Faleceu com as pernas amputadas devido à doença, mas sempre tinha um afeto para doar. Que alma boa!
Em busca por uma ambição de riquezas podemos nos perder no tempo. E não há nada de mal em ser rico. A questão realmente é como se aproveita aquele tempo: seja trabalhando, estudando, dedicando-se a causas e pessoas queridas. É a única coisa que não podemos repor. O tempo é inegociável. Não podemos voltar atrás com uma palavra já proferida. Nem atitudes cometidas. O feito, realizado, é passado, lição, história.
O tempo só passa a ser nosso aliado quando decidimos nossas prioridades. Aquela idosa alegre ensinava ao nosso grupo o valor do tempo. Regava as suas plantas cantando, contava lorotas para os outros idosos, ligava-me e me dizia sem arrodeios qual era o lanche que gostaria de saborear no domingo. Ela estava sendo presença o tempo todo. Havia também o tempo em que ela se entristecia, sentia saudades dos seus e nos pedia pra ouvir canções de Altemar Dutra, uma espécie de sofrência daquela época. Mas até para sofrer ela respeitava seus sentimentos com dignidade. 
Visto que não existe um tempo só para felicidade e nem tampouco, só para amarguras, é preciso colher um dia de cada vez. O sociólogo Antonio Candido, que resenhou livros de nomes como de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector, dizia que “uma das coisas mais sinistras da história da civilização ocidental é o famoso dito que tempo é dinheiro. Isso é uma monstruosidade. Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida.”, alegava.
Essa crença está incutida de forma brutal na sociedade. Agora vem a minha parte preferida. “A luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize”. Uau! Essa humanização para cada um tem um significado e o resultado deve ser em se sentir bem! Para Madre Teresa de Calcutá e Irmã Dulce o tempo humanizado estava no trabalho contínuo em servir aos semelhantes. Para Buda, estava em meditar. Para um professor devotado talvez esteja em dar suas aulas e ver os alunos florindo. 
Mas não é só isso. Como seres ambivalentes, teremos nossos momentos onde veremos o tempo se perder. O fato é que enquanto estivermos correndo atrás do ouro do relógio e não valorizarmos a finalidade da máquina que contabiliza nossas horas, ou seja, o tempo, nos colocamos como reféns. É confortável justificar que está sem ‘tempo’, quando na verdade são escolhas que fazemos.
Antonio Candido narrava como avaliava seu processo decisório. “Esse tempo pertence aos meus afetos. É para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis. Isso é o tempo”.
Grande parcela da população hoje sofre com depressão, ansiedade e crises de pânico por não investir na dupla: tempo e autoconhecimento. Recentemente até puseram um termo associado: o tempo ‘de qualidade’. Ora, para mim todo tempo precisa de qualidade: no trabalho que exerço, com as pessoas que convivo, etc. Se não tem qualidade eu é que estou me desqualificando em algum nível e escolha. Há percepção para averiguar e tempo para corrigir. Aurora, que tem o nome do momento que antecede as manhãs, a manifestação do nascer do sol, me deu um relógio com o objetivo de me ensinar sobre a preciosidade do tempo e ela tinha razão. A melhor colheita do tempo é viver o agora com sorriso e gratidão, perdoando-se pelo passado, felicitando-se com as boas lembranças, construindo novas histórias, tendo o tempo para vivê-lo como nosso amigo e aliado. O hoje é um evento inédito. Celebremos, acordemos, despertemos os nossos relógios. 

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