Santíssimo Paulo:
Acredito que a sua carta mais famosa ou talvez a mais difundida seja aquela primeira que você (já havia combinado que o trataria por você apesar do pomposo evocativo inicial) escreveu à Igreja de Corinto, sobretudo o capítulo treze que de forma belíssima retrata o amor. Pois é desse amor que estamos carecendo urgentemente e por isso lhe pergunto se não seria possível renová-la agora, dirigida a outras nações desse mundo que se diz fervorosamente cristão. Desculpe insistir nessa tecla de cristianismo pois eu sei que existem outras nações orientadas por um certo profeta que também acreditam que a guerra é o caminho, mas escolhi me dirigir a você porque estou no lado do mundo dos que o aceitam como mentor. Apesar da sua carta sobre o amor eles fazem guerra acreditando piamente que Deus é amor. Não consigo entender.
Sei que você acompanhou as imagens (e você nem precisa de televisão para isso) de um êxodo às avessas que está levando milhares de pessoas para fora das suas casas, da sua terra, sem sequer levarem seus pertences e, acima de tudo, deixando para trás o seu futuro. Como a esposa de Ló, não podem sequer olhar em volta pois correm o risco não de virar estátua de sal, mas de serem atingidos por um míssil que os transformaria em pó. Diante deles não existe nada a não ser a sobrevivência e, na grande maioria, apartados da própria família. Caminham sós, sem ninguém que os guie até porque, como não há futuro, também não há destino. Expostos ao frio que congela os seus corpos cujas almas já foram mutiladas, andam à mercê da sorte, do acaso ou de uma pequena mentira. Se movimentam no limite das coisas, no limite das fronteiras, no limite da vida.
Sabe Paulo, naquele êxodo judeu, eles saíram em busca de uma terra prometida. Nesse que assistimos agora em tempo real, a terra que eles já possuem lhes está sendo negada. Como estamos falando do antigo testamento permita-me usar outra referência icônica dos cristãos. E essa Torre de Babel erguida entre eles de tal forma que não lhes permite qualquer entendimento? Confundiram-se lhes a língua? Acredito que sim, pois você escreveu: “ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos se não tiver amor nada disso me aproveitará”, o que me leva a concluir que sem amor é vão o domínio das línguas porque elas confundem mais do que agasalham.
Nenhuma palavra é mais doce do que a respiração tranquila daquele que está ao meu lado. Quando o barulho das armas suspende a minha respiração eu deixo de existir. Naquele momento eu estou morto, porque o fôlego é a vida que eu preciso suspender temporariamente para continuar a viver depois. E depois? Se as armas não derem trégua é possível continuar vivendo? Eu sei que você vai recomendar, como bom missivista cristão, que eu olhe para o lado daqueles que estão oferecendo o seu apoio, o seu abrigo e até o seu carinho para acolher esses desaventurados. Desculpe discordar, mas é que eu acredito que a guerra é o grande crime que não pode ser punido e por isso irremediável. Nada pode compensá-la. Ela é o mal maior.
A grande filósofa judia-alemã Hannah Arendt, que foi obrigada pelas circunstâncias a fugir da sua própria casa, deixando para trás as suas raízes e que vagou pelo mundo (incluindo um campo de concentração), apátrida, durante dezoito anos, em decorrência de uma guerra, afirmou com grande preocupação: “A política do mal menor sempre teve a tendência sórdida de se apegar ao grande mal e, portanto, de preparar o caminho para novos males ainda maiores”. Que Deus nos livre da “banalidade do mal”! Como você, ela gostava de escrever cartas e escreveu muitas. E como você estava quase sempre certa.
Perdoe-me a pequena dúvida sobre o “quase”, mas já escrevi, na carta anterior, que tenho medo das verdades absolutas.
Ansiosamente,
Esperança
P.S. Observe como posso ser controversa. Não é extremamente contraditório uma esperança ansiosa?
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