*Por Peterson Almeida Barbosa
Em recente decisão, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro cassou o diploma do Deputado Estadual Fábio Francisco da Silva (União), basicamente por ter promovido, através de programa em rádio na qual atua como apresentador, festivais gospel em templos religiosos “assemelhados a showmícios”. Consta ainda que, do púlpito transformado em palanque, o parlamentar proferiu discursos políticos e distribuiu material de campanha, entendendo a Corte, por conseguinte, terem restados caracterizados os abusos de poder econômico e midiático.
O tema – abuso de poder religioso – conquanto não legislado, é, de tempos em tempos, revisitado pela Justiça Eleitoral, como agora se sucedeu. Sem adentrar no mérito da decisão, mesmo porque passível de recursos, o que dos fatos se pode extrair é quão tênue é a linha que separa os princípios de matriz constitucional em comento, quais sejam: as liberdades de expressão, religiosa (expressão, consciência, reunião, crença e culto) e a normalidade e legitimidade que devem nortear os pleitos a garantir a paridade de armas entre os players.
O poder religioso é dotado de enorme capilaridade, e seus atores são, muitas das vezes, personagens carismáticos, exercentes de forte influência, fascínio e mesmo temor reverencial sobre os fiéis, até mesmo por sua suposta interlocução divina, findando assim por, não raro, vincularem sua missão espiritual à política, estreitando fronteiras e, desta forma, conquistando eleitores fiéis, os quais, não incomumente, são pegos fragilizados, abduzidos por uma verdadeira embriaguez litúrgica proferida por autênticos mestres da palavra, findando ditos votantes por naqueles confiarem seus votos.
Esta nefasta influência da religião na política, e da política da religião, é via de mão dupla que se retroalimenta pela instrumentalização recíproca. Apresentar-se, ou ser apresentado à assembleia, como “candidato da igreja”, seu representante que lá (na Assembleia Legislativa) irá defender, ou pedir orações e bênçãos por sua candidatura, não é incomum são, na verdade, pedidos de votos travestidos.
Por seu turno, a legislação é clara a não permitir a realização de propaganda política em templos religiosos, como já ocorreu de se distribuírem santinhos (com o perdão da antífrase).
Dito isto, não se está a afirmar que sacerdotes e pregadores estejam impedidos de enfrentarem, em seus sermões, homilias, preleções ou reflexões os temas que afligem a sociedade, podendo ainda, livremente, expressarem suas opiniões e seus conselhos a respeito daqueles assuntos, porém, é preciso que tenham o cuidado de não transformarem seu discurso religioso em elemento propulsor de candidaturas.
Nenhuma liberdade está à margem da lei, nem mesmo os direitos fundamentais são absolutos; o argumento do freedom speach não ampara nem acolhe a transformação do culto ou da missa em local de pedido de votos. Não se pode, como já se viu, defender a candidatura de cidadãos que consagrem valores e princípios e expressar, contrario sensu, seu antagonismo àqueles que exprimam ideias contrárias à sua crença; isto é fazer oposição beliscando os contornos expressos do contencioso eleitoral proibitivo.
A mesma legislação também é bastante clara ao não permitir que confissões religiosas patrocinem candidaturas. Partidos políticos e candidatos são proibidos de receber direta ou indiretamente doação em dinheiro ou estimável em dinheiro daquelas, sob pena de se transformarem em “puxadinhos” de entidades religiosas, conquanto a prática demonstre a enorme dificuldade em conter esta drenagem informal de recursos, mesmo porque, os dízimos, em sua maioria, são ofertados em espécie, o que dificulta o follow the money, via crucis em crimes como os de lavagem de capitais.
Como se disse, distante de não se permitir que candidatos possam confessar suas preferências religiosas, ou mesmo não lhes permitir registrar-se utilizando seus nomes religiosos; em instante algum se pode recursar a legitimidade da participação de religiosos na cena política, o Estado não é juiz da religiosidade e da fé, e conter abusos não é sinônimo de conter cultos, o que se busca reprimir é que as estruturas eclesiásticas sejam utilizadas para promover o desequilíbrio do certame, permitindo que haja uma supremacia da identidade religiosa sobre a partidária.
A busca de votos no segmento religioso – ou em qualquer outro – sobretudo naqueles com público composto por vulneráveis sob os pontos de vista econômico e social, deve ser pautada pelo pleno respeito à liberdade do eleitor, prescindindo de qualquer elemento de constrição, ameaça ou admoestação.
Conquanto o abuso do poder religioso não seja um ilícito em si, condutas avultadas, dotadas de gravidade, podem configurar outras modalidades de abuso previstas na legislação, como sói ter ocorrido no caso trazido à baila, no qual, a mim me pareceu, houve uma mercantilização do sagrado.
A liberdade religiosa deve caminhar pari passu numa arena política garantidora da ampla liberdade do voto. Oportuno lembrar que o “estatuto da ética e da moralidade”, a famosa lei da ficha limpa, teve inspiração em campanha da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil que tinha como slogan “voto não tem preço, tem consequências”. Que assim seja.
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*Promotor de Justiça (MP-SE), Mestre em Direitos Humanos, Professor de Direito Eleitoral e membro da ABRADEP – Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político. Contatos: petersonab@hotmail.com