Cresci frequentando a loja de tecidos do meu avô e do meu tio-avô no Baixo São Francisco. Os dois galpões lotados de fardos de pano eram frequentados pela freguesia propriaense. A maioria eram mulheres, mães de família, que além de cuidarem do lar, educavam as crianças, eram mil e uma utilidades. Minha avó, a mulher que mais me influenciou na vida, também se enquadrava neste modelo familiar. E ainda costurava nas horas vagas para todos os filhos e parentes. Todo fim de ano, a família conta, meu avô Othon chegava com um fardo de tecido em casa para presentear a esposa. Presente de grego? O que sei é que nos registros fotográficos todos estavam estampados com o mesmo pano, tal qual farda de time de futebol. Meus vestidos de quadrilha junina e todos os eventos escolares eram produzidos pelas mãos dela. Vovó Celuta, para mim, é uma artista.
O empreendimento de tecidos findou com o falecimento do meu tio-avô Érico, mas também já vinha sinalizando outros tempos desde que a China passou a fabricar e importar seus produtos. Não teve indústria têxtil que desse conta da concorrência teconológica veroz. Assim também aconteceu com as fábricas de beneficiamento de arroz que fomentavam a economia ao redor do Velho Chico. Meu avô foi professor de Contabilidade na antiga Escola Técnica. Naquele mesmo prédio eu fiz um curso de datilografia, cujo diploma ainda guardo caso precise comprovar da onde veio minha agilidade com as letras. Errar, naquele tempo, era uma treva nos tempos pré-jurássicos onde se refazia tudo manualmente. Seja na máquina de datilografar ou na de costura de vovó, a concentração e paciência tinham que ser a máxima. O valor do trabalho era diferente. O valor de humanidade nas pessoas era diferente. Será que éramos mais tolerantes ao termos menos tecnologia?
O fato é que a tecnologia tem moldado comportamentos. E não, vice-versa. Para quem ainda não assistiu, sugiro apreciar o documentário ‘O dilema das redes’, na Netflix. Em busca de agilidade, não de precisão, trabalhos e relações iniciam e finalizam em passe de mágica. Já prestei serviço durante um ano, para um cirurgião que atua em São Paulo, sem nunca precisarmos sentar para tomar um café em reunião. Praticidade nos negócios realmente é excelente. Mas nada supera uma comunicação em 360º: linguagem verbal e não-verbal em fusão.
Com barras de notificação ambulantes e ansiosas que nos convidam para dar uma checada a cada minuto no celular, crescem ansiedades e pessoas cada dia mais imediatistas. Basta um clique e a comida chega na porta de casa. Basta um clique para deixar de ser ‘amigo’, na rede social, se é que algum dia isso fora amizade. Uma cultura de cancelamento, intolerante, arrancaria o dedo daquele que engoliu uma letra na máquina de datilografar ou daria um corte na tesoura afiada da minha avó costureira.
Pegar um livro para ler ou assistir uma série inteira virou programação dos resilientes, da turma da resistência. Assim como tem gente que julga o livro pela capa, e eu me incluo nessa até ler as dez primeiras páginas da indiana Rupi Kaur, com um título para lá de esquisito ‘outros jeitos de usar a boca’. “É o quê mesmo que essa moça quer dizer? Lá vem meu Deus, mais um ’50 tons de cinza’ com apelo sexual”, pensei, julguei e me perdoe, Rupi! Você é uma das poetisas e escritoras mais originais que já tive acesso.
Eu trabalho o tempo todo com gestão de crise de imagem para as empresas que assessoro. Com o digital o acesso aos canais de comunicação foram imensamente facilitados, mas precisamos mencionar que hoje o desafio em gerir credibilidade é infinitamente maior. O ativismo aumentou e isso é ótimo, contudo não está acompanhado pela checagem dos fatos. Uma mentira, em questão de segundos, vira mídia. Há outro livro fabuloso de Paula Sibilia que se chama: ‘o show do eu – a intimidade como espetáculo’. Em redes sociais o case tá mais que comprovado. Roteiriza-se uma vida perfeita, o socialmente aceito e valorizado, calibra-se autoestima por curtidas e comentários, cada qual faz sua vitrine e cria sua própria novela.
São tempos de muita criatividade, inovação, acessos facilitados, mas emocionalmente a sociedade não evolui na mesma velocidade. Como fiscalizar um filho com mais de 12 mil seguidores no tiktok falando em linguagem de anime? Essa é a mãe Shirley se questionando a cada dia. Durante a pandemia Matheus aprendeu a editar vídeos, fez lives e ganhou popularidade entre os adolescentes que curtem desenho japonês. Os pais ficam sem tradução porque o máximo que eu sei é quem é Naruto e Pikachu, minha gente. E há desenhos mostrando heróis se suicidando com o término de namoro. Há vídeos questionando a sexualidade de Jesus. São tempos onde temos que nos fazer presentes, ao vivo, online, em áudio, em vídeo e encurtar as diferenças entre gerações. Explicar porque aquele tipo de conteúdo dissemina ódio, desespero e até suicídio. Temos noção do perigo?
A tecnologia definitivamente não pode ditar nosso ritmo. Alto lá´: agora vou fazer uma caminhada, tomar um banho de sol, sem celular, sem paranoias. E quem é este ser que deseja fazer amizade no facebook? Nunca nem vi. Época de fakes pessoas, situações e notícias. Como distinguir a verdade do que é real? Só tem um jeito: é conhecendo a própria verdade sobre quem se é, o que se quer e qual caminho deseja seguir. Tome uma rota ou as ofertas tecnológicas, a um clique de facilidade, vai fazer que nem a música de Zeca Pagodinho: deixa a ‘vida’ me levar…. Para onde, criatura? Vai seguir um fluxo de manada?
No galpão de tecidos de meu avô eu brincava de me esconder. Mas uma vez na rede www não tem como deixar de ter identidade. Você existe. Nem que seja através do comentário ou post de outra pessoa. No MBA da Escola Superior de Propaganda e Marketing, falávamos na sala de aula sobre o Onlife. Não há divisões entre o que está online e offline. Existe um ser integral, às vezes fragmentado ali e acolá, talvez vivendo a vida que se deseja ter apenas no online. Plenitude e ‘gratiluz’ em todas as fotos do insta. Onde se escondem os desafios de cada ser? Cada um que interprete o seu.
‘A vida é tão rara’, uma letra singular de Lenine, me remete para finalizar a crônica de hoje quase como um pedido de SOS. É fevereiro, talvez esteja saudosa e musical pelos carnavais que não vivemos em 2020 e nem viveremos em 2021. Pause um pouco, meu amigo leitor(a). Ouça agora a sua música preferida, tome um gole de sua bebida predileta e aprecie a sua existência, a saúde que desfruta, o inspirar e expirar. Enxergue-se com compaixão a partir de agora. E fique aqui com um trechinho de Lenine: “Enquanto o tempo acelera e pede pressa. Eu me recuso, faço hora, vou na valsa. A vida é tão rara. Enquanto todo mundo espera a cura do mal. E a loucura finge que isso tudo é normal. Eu finjo ter paciência. O mundo vai girando cada vez mais veloz. A gente espera do mundo e o mundo espera de nós. Um pouco mais de paciência.”

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