O órgão é o instrumento musical de teclado mais antigo do ocidente, cuja descrição aparece em relatos greco-romanos que remontam sua criação por volta do séc. 3 a.C. Sua tradição está vinculada à liturgia cristã. O som peculiar, bem como a modulação capaz de imitar vários instrumentos, deram ao órgão um lugar importante no cenário musical que adquiriu, ao longo dos séculos, uma índole sacra.

Índole sacra ela também possuía e talvez por isso ela se apaixonou pelo órgão como instrumento que lhe possibilitava a aproximação com Deus nos cultos por ela frequentados. Aprendeu a tocar com grande facilidade através das leituras das partituras que ela começou a dominar com muito estudo e dedicação, e que estavam disponíveis numa brochura dos “Salmos e Hinos”, pois só sabia fazer as coisas muito bem feitas, sobretudo aquelas que se destinavam ao alimento do espírito. A alma era o que havia de mais importante no gênero humano e a ela devia ser oferecido o que havia de melhor em cada um.

Aos quinze anos ganhou do pai um órgão para tocar à vontade e acompanhar os cultos quando realizados em casa, já que ele era um líder da igreja no pequeno povoado onde moravam. Além de organista, possuía uma belíssima voz de soprano com que cantava acompanhando os hinos liderando a liturgia musical tão cara aos protestantes em geral já que possuem, além de belas melodias, poesias fortemente inspiradoras para o cultivo da fé, sejam elas de adoração e louvor sejam aquelas que reforçam a fé.

Aos vinte e um anos casou-se com um rapaz que por ela se encantara, mas com o qual não possuía grandes afinidades já que se tratava de alguém muito distante do seu mundo, cultivado com tanto esmero nos últimos dez anos da sua vida. Casar era preciso, afinal as suas irmãs mais novas já haviam feito esse rito de passagem tão necessário às mulheres que não dispunham de outras formas de afirmação. Leva consigo o enxoval preparado com esmero, já que era costureira e bordadeira primorosa, e o órgão, que se tornara parte essencial de si mesma e que representava todas as boas lembranças de uma vida que ficara para trás.

Os anos se passaram, as crianças nasceram e as dificuldades da vida se instalaram como regra e foram crescendo à medida que o número de filhos aumentava e as possibilidades financeiras diminuíam. Mas ela também sabia costurar, e muito bem, como tudo que fazia, e a sonoridade do órgão foi aos poucos sendo substituída pelo barulho da máquina de costura, pois tocar alimenta a alma mas não paga dívidas e costurar pode alimentar oito ou nove bocas. A organista agora cantava para se distrair um pouco ou talvez para abafar o barulho da máquina Singer, àquela altura movimentada por um pedal que ia e vinha por horas a fio, inclusive pela noite adentro e até pela madrugada. Cantava os hinos da igreja para fortalecer a fé que remove montanhas, ou as músicas produzidas em profusão pela famosa disputa entre Herivelto Martins e Dalva de Oliveira, a cuja voz a dela muito se assemelhava e que ela cantava com emoção como se estivesse partilhando as mesmas agruras.

Depois de sucessivas mudanças, cada vez para um lugar mais modesto, estava agora morando numa pequena casinha, situada ao fundo de um lenheiro com acomodações precárias. Naquele dia chovia muito, e o seu filho mais velho fazia a dança da chuva, aprendida, certamente, nos filmes de caubói que passavam em seriado no velho cinema Tupy, que ele frequentava por vias escusas, já que não tinha dinheiro para pagar ingresso, mas que ele precisava assistir todas as noites pois não podia perder o “perigo da série”. O fogão da casa era à lenha e naquele momento não havia uma “lasca-de-lenha” sequer que não estivesse encharcada. Eram sete horas da noite e o seu marido começou a ficar muito inquieto com a possibilidade de não poder fazer comida para alimentar a todos. De repente ele olha de lado e lá está o velho órgão, madeira sequinha, disponível para consumo.

Depois que todos se alimentaram graças à produção de lenha fornecida pelo instrumento musical, ele foi dormir satisfeito, com o dever de provedor cumprido já que havia jurado que um filho seu jamais passaria fome ainda que fosse em uma refeição sequer. E sonhou como um justo.

Ela não conseguiu dormir e muito menos sonhar já que, como no poema de Marina Colassanti, estava se formando “um coágulo na alma, sangue preto pisado que amor nenhum dissolve”. Nunca mais voltou a tocar. A diferença de sonhos é uma barreira intransponível.

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