A decisão do TCU me chamou atenção pela sua franqueza. Após anos acompanhando políticas urbanas, raramente vejo um órgão de controle ser tão direto: o Ministério das Cidades simplesmente não tinha nada concreto sobre cidades inteligentes. O ministro Jorge Oliveira foi categórico no Acórdão 256/2024 – uma leitura que recomendo a qualquer gestor público. A determinação é clara: criar um procedimento de supervisão para examinar as perspectivas de elaboração e propostas de regulamentações relativas ao PNDU e às políticas de modernização digital urbana.

A resposta veio rapidamente com a Nota Técnica 001/2025 – um documento que, devo admitir, me surpreendeu pela abrangência. Desenvolvida pelo Ministério das Cidades em parceria com a Casa Civil, representa o primeiro esforço sério de estruturar uma política nacional para cidades inteligentes. Mas aqui surge minha primeira preocupação: será que municípios menores terão capacidade técnica para implementar parcerias público-privadas complexas?

A criação da EMTDU é, sem dúvida, o coração da proposta. Em teoria, cada município deveria criar sua estratégia própria, alinhada aos ODS. Louvável. Mas tendo avaliado prefeituras na elaboração de planos diretores, sei que a realidade é mais complexa. Quantos municípios têm equipe técnica para desenvolver uma estratégia digital consistente?

A lista de tecnologias é ambiciosa: mobilidade inteligente, iluminação otimizada, monitoramento ambiental, centros de gestão integrados. Impressiona no papel. Mas os custos? Para financiar essas iniciativas, o próprio texto prevê o uso do Fundo de Estrutura de Projetos (BNDES FEP), recursos da taxa de iluminação pública (COSIP) e linhas de crédito no Brasil e no exterior.

Dentro da nota vemos um avanço conceitual importante, agora se fala em política permanente, não apenas vitrines tecnológicas. Isso me lembra a evolução das cidades inteligentes pelo mundo, que surgiram como inovações e evoluíram para políticas estruturantes. Ao estabelecer diretrizes precisas, vinculadas à sustentabilidade econômica e à equidade social, a Nota Técnica consolida a perspectiva de que a modernização urbana digital deve representar um caminho para as cidades do futuro.

No mesmo caminho, o Ministério das Cidades publicou a portaria 1.012/2025 que chegou apenas três meses depois, uma velocidade incomum para o setor público. Isso pode indicar tanta eficiência quanto pressa excessiva. Nela são definidas orientações nacionais para a elaboração de estratégias específicas à digitalização urbana.

O que mais me chama atenção na portaria é a conexão regulatória territorial municipal com inovações digitais transformadoras ordenadas, fundamentando-se em bases como a sustentabilidade ambiental, a administração participativa das cidades, a segurança de informações pessoais e a aplicação responsável da inteligência artificial. Essas orientações se harmonizam com referências fundamentais como o Estatuto da Cidade, a Carta Brasileira para Cidades Inteligentes, o Plano Nacional de Internet das Coisas e a Estratégia Nacional de Governo Digital.

A lista tecnológica é extensa, talvez extensa demais, sobressaindo os sistemas inteligentes de transporte urbano, incluindo detectores de fluxo veicular, sinalização adaptativa em tempo real, pagamento eletrônico de passagens e plataformas integradas; complementados por tecnologias para mitigação de desastres naturais, como monitores meteorológicos e conjuntos com redes de comunicação via televisão digital. A norma aborda ainda infraestrutura de iluminação otimizada, vigilância ambiental, identificação facial e veicular com supervisão ética, mapeamento geográfico e estrutura para informações abertas, inteligência artificial e processamento em nuvem.

Os consórcios intermunicipais são uma ideia inteligente, algo que venho defendendo há anos. Municípios pequenos sozinhos não têm escala para certas tecnologias, mas juntos podem viabilizar projetos. A priorização de tecnologias nacionais também faz sentido estratégico, embora me preocupe se tivermos fornecedores locais maduros o suficiente. Além disso, para localidades expostas a vulnerabilidades climáticas, como inundações, temperaturas extremas, estiagens e movimentos de terra, a orientação é implementar tecnologias específicas de monitoramento e prevenção, reforçando o caráter adaptativo e preventivo da transformação digital urbana.

No papel, a portaria equilibra bem tecnologia e inclusão social. Mas tendo acompanhado implementações de políticas digitais municipais, sei que o diabo está nos detalhes. Como garantir que a ‘participação cidadã’ não seja apenas consultas públicas pro forma? Como garantir que as tecnologias não ampliem desigualdades digitais? Já para os administradores públicos, representa uma possibilidade concreta de adequação de seus territórios às orientações nacionais e globais do conceito de cidade inteligente como função social da cidade.

Um passo importante para a obtenção dos recursos a serem utilizados na transformação das cidades em inteligentes foi a criação do Pacto “Meu Município pelos ODS”, uma iniciativa que pode realmente fazer a diferença para as administrações municipais brasileiras se bem implementada. Gestores municipais que aderirem a Carta-Compromisso obterão acesso a um Conjunto de Vantagens que abrange financiamento, qualificação profissional e suporte técnico para transformar suas cidades em espaços mais sustentáveis e inovadores.

Dentre as iniciativas, sobressaem as modalidades de financiamento para projetos sustentáveis oferecidos pelo Banco do Brasil, BNDES e instituições bancárias regionais, direcionados a energia renovável, transporte urbano, manejo de resíduos e adaptação climática. Esses investimentos dialogam diretamente com o ODS 11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis, que se articulam com o conceito de cidades inteligentes, unindo tecnologia, inclusão social e sustentabilidade.

Para além dos recursos econômicos, a iniciativa disponibiliza capacitação técnica gratuita desenvolvida por organizações como PNUD, ENAP, IBGE e IPEA, contemplando métricas dos ODS, ordenamento territorial e inovação em políticas governamentais. Também estão previstas parcerias público-privadas, centros de inovação e plataformas digitais para enfrentar desafios urbanos de maneira colaborativa.

Com isso, os municípios e seus gestores estão diante de recursos para transformar sua cidade e alcançar as metas da Agenda 2030. Para os prefeitos, aderir ao programa é a chance de deixar um legado: cidades mais inteligentes, justas e sustentáveis.

O Brasil atravessa um período importante para a criação das cidades inteligentes e sua política pública. A intervenção do TCU, a edição da Nota Técnica nº 001/2025, a Portaria MCID nº 1.012/2025 e a iniciativa “Meu Município pelos ODS” sugerem que o país finalmente está levando a sério as cidades inteligentes, embora permaneçam dúvidas sobre a sua implementação na prática.

Por tudo isso, podemos concluir que implementar dispositivos tecnológicos ou melhorar os serviços públicos digitais são apenas exemplos de soluções ou instrumentos, mas o principal objetivo de qualquer cidade inteligente é desenvolver seus centros urbanos utilizando tecnologia para enfrentar os desafios urbanos. Para os administradores municipais, a oportunidade para cumprir as diretrizes da Agenda 2030. Para os cidadãos, significa o grande passo para a transformação de sua cidade em inteligente e sustentável.

 

Diogo de Calasans Melo Andrade Advogado OAB/SE 3691,

Presidente da Comissão sobre Cidade Inteligente da OAB Federal,

Pós-doutoramento na Itália sobre Cidades Inteligentes www.diogocalasans.com.br

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