Chovia lá fora aquela chuva fina que sempre a incomodava porque lhe provocava uma infinita tristeza. A chuva fina não lhe dizia nada ou melhor parecia uma coisa insidiosa como uma dor fina e difusa que percorria as suas entranhas e a deixava com calafrios nostálgicos. Preferia aquelas que eram intensas e sobretudo as acompanhadas de raios e trovões que ela interpretava como sendo a ira de Deus. Fora assim no dia em que pregaram o Seu filho numa cruz e Ele demonstrara toda a Sua ira santa escurecendo os céus, rasgando o dia e colocando a todos de joelho. Prostrados. Ela pensava que era assim que Ele mostrava toda a Sua insatisfação. Fora assim também no Dilúvio. Ela sentia Deus nas tempestades. Mas na chuva fina não. Na chuva fina ela sentia o não-Deus.

Chovia essa chuva indiferente e fria naquela tarde, há trinta anos, quando ele se postou diante dela, sem nunca ter anunciado nada, e lhe disse que estava tudo acabado, que não suportava carregar no dia a dia o peso da sua inteligência. E não havia anunciado nada, justamente para ela que se chamava Maria da Anunciação e que ele chamava carinhosamente de Anunciata, assim mesmo, como se fosse um nome estrangeiro. Estrangeiro que ele se tornava agora, como se quinze anos de convivência não significassem muita coisa. Quinze anos é muita coisa, ou coisa nenhuma nesse universo de bilhões de anos? Lá vai ela com seus questionamentos inúteis! Teria sido por causa do seu nome que ela decidira se fechar num convento e submeter a tal inteligência que o afastara dela? Maria da Anunciação é nome de santa. As regras inquestionáveis do convento a limitaria e assim ninguém mais teria necessidade de contê-la. Ela já estaria contida.

Mas a chuva fina que caía lá fora continuava a inquietá-la. De repente sentiu uma inexplicável claustrofobia. Precisava sair. Pegou no cabide a grossa capa escura com capuz (queria esconder a sua procedência?) e saiu sem que ninguém a visse. Sem anunciar. Saiu sorrateira como se estivesse prestes a fazer alguma coisa muito errada. Uma falta grave. Mais grave que a sua falta, porém, era a necessidade quase física que ela sentia de sair. Se naquele momento Deus estivesse manifestando a Sua ira ela sentiria medo, mas a chuva fina só lhe provocava angústia de viver, por isso saiu. Há quanto tempo não via o mundo lá fora? Escolhera a clausura porque a dor de ser abandonada se tornara insuportável e por isso ela resolveu fugir. Fugir da vida. Hoje, não sabia bem por que, precisava enfrentá-la.

Não reconheceu o lugar aonde se encontrava, e logo percebeu que trinta anos era muito tempo do ponto de vista humano mesmo que fosse apenas uma insignificante partícula do tempo em si, que não cabia em sua medida. A calçada molhada exigia a sua atenção e ela resolveu seguir em linha reta, pois os caminhos curvos são mais difíceis de percorrer e você nunca sabe onde podem lhe levar. Em linha reta, sempre em linha reta…Quem foi mesmo que disse que todos os caminhos levam a Roma? Mas ela não quer ir à Roma. Roma já está dentro dela fazendo parte do seu cotidiano há trinta longos anos numa tentativa vã (que só agora ela sabe!) de encontrar o seu próprio caminho, caminho perdido naquela tarde nebulosa de chuva fina em que ela decidiu se esconder perdendo a chance de desabrochar. Dia de chuva era tempo de desabrochar? Ou seria tarde demais? As estações já teriam passado? Será que se ela se dirigisse a uma estação qualquer o tempo a esperaria lá?

Continuou andando olhando ao redor, vendo pessoas desconhecidas que de repente a interessavam porque eram pessoas, observando através de uma névoa fina a natureza que ela ainda conhecia, pois a natureza não é como os homens que mudam com tanta rapidez, ela tem um quê de permanência, por isso é facilmente reconhecível. Depois de andar por um tempo que pareceu eterno passou por uma casa com um belo roseiral do qual, antes mesmo de vê-lo, sentiu o seu perfume. Logo em seguida avistou uma igreja e ela percebeu que estava nos arredores do que antes fora a sua casa. Por que ainda a chamava de sua se dela fugira há trinta anos como o diabo foge da cruz? Fugindo como o diabo, ela acabou na igreja. Da cruz, porém, ela não conseguiu se livrar.

Estava parada em frente à calçada que se tornou de repente tão familiar quando envolto em névoa ele apareceu. “Anunciata, o que fazes aqui?”. Por artes de qual demônio ele a reconhecera com aquela capa que transformava todas as conventuais numa massa amorfa e sem vida? Agora ele estava se aproximando e ela buscou com sofreguidão o crucifixo no peito para exorcizá-lo, mas percebeu em seguida que estava sem ele. Na pressa de sair havia descumprido mais uma regra. Mais uma punição para o caso de voltar. Mais um motivo para não voltar?

“Você não sabe o quanto desejei vê-la todos esses anos. Você não tem o direito de sair tão definitivamente da vida de uma pessoa com a qual esteve por quinze anos”. Ela não conseguia atinar o que estava ouvindo. Tentou dar um passo à frente, mas as pernas não a obedeciam. Teimosamente não daria um passo atrás. Nunca mais. Fora exatamente para esquecer, que ela se enclausurara e ele agora lhe exigia lembranças. As lembranças que ela lutara todos esses anos para cobrir com rezas carregadas de extremo fervor e que tanto lhe custara. Mas não lhe daria respostas ainda que os seus pés, traiçoeiramente, a pregasse com chumbo naquela calçada, naquela tarde fria, de chuva fina que ela sempre detestara. Sem qualquer traço de arrependimento ou remorso ele voltou a falar: “Por favor, não deixe que se apaguem em você as minhas lembranças. Eu sinto que todas as lembranças de mim só existirão através de você. Você é a guardiã de mim mesmo”. Ela permaneceu quieta. Não lhe faria promessas. Nunca mais faria promessas. De agora em diante viveria sem futuro. Para começo de conversa mudaria o seu nome para Maria do Socorro. Ou seria um final de conversa? E essa chuva fina que não cessa? So-coooor-ro!!!