A Páscoa judaica, conhecida pelos judeus como Pessach significa passagem e relembra a libertação do povo hebreu da escravidão no Egito há cerca de 3.500 anos. Comemorada pela primeira vez com o povo ainda no cativeiro, pouco antes da última praga, o Deus de Israel ordena que a data seja celebrada com pães ázimos servidos com ervas amargas e que o ritual seja mantido anualmente e para sempre, como uma lembrança permanente da importância do que estava para acontecer e que marcaria aquele povo como ferro em brasa, já que essa situação se repetiria ao longo dos séculos com outros nomes como fogueiras, inquisições, perseguições, holocausto…Nesse primeiro êxodo, levariam quarenta anos até chegar a Canaã, a terra prometida onde jorraria leite e mel e para isso passariam por muitas “provações” como se o Deus que os escolhera os quisesse melhores, mais reverentes.
Enquanto a Páscoa judaica relembra a passagem do anjo da morte que motivou a aquiescência do faraó à libertação do seu povo do cativeiro ao qual estavam acorrentados, a Páscoa cristã –eis que tudo se fez novo- relembra o sacrifício de Cristo e sua ressurreição, isto é a sua passagem da morte para a vida. Na Páscoa judaica como na Páscoa Cristã é a possibilidade de vida transformada que todos comemoram. A chegada a Canaã ou a certeza de viver eternamente no Paraiso.
Para o escritor e filósofo britânico John Gray a ideia de progresso é uma coisa ilusória pois a história é de fato, feita de avanços mas também de recuos, levando os homens a repetirem os mesmos erros cometidos no passado, travestindo-os com novas roupagens, novos significados e até atribuindo-lhes novos valores. Na história das epidemias comportamentos humanos também se repetem desde os primórdios até os nossos dias corroborando assim a tese do historiador. A culpa está sempre no outro, em outros lugares capazes de “produzir” o mal ou até em Deus que manifesta a sua ira sobre os homens como fez no episódio do Dilúvio, da torre de Babel ou em Sodoma e Gomorra.
Essa semana, cristãos que somos majoritariamente como conjunto da nação, estamos comemorando com vigor a nossa Páscoa, já que nos tornamos nos últimos tempos fervorosos em várias formas de devoção.
Será? Ou estamos como na canção dos Tribalistas “atravessando o mar Egeu/ Um barco cheio de fariseus”, com os nossos irmãos “dando a mão pra ninguém”? A marca dos 300.000 mortos sinaliza um quadro de horror simbolizando uma páscoa mais de sacrifício como a do povo judeu que de vida como a dos cristãos. Uma sucessão de erros cometidos em nome de uma religiosidade cega e de um negacionismo burro, que grassa em nosso país e nos coloca numa fase de recuo da história, negando tantos avanços conquistados há mais de um século. No que provávamos ser eficazes até pouco tempo atrás agora nos mostramos ao mundo, trôpegos, capengas, caindo numa vertigem que nos assombra como se estivéssemos entrando num túnel interminável de obscuridade profunda.
Muitas mãos estão estendidas em direção a um vazio sem resposta e todas elas buscam em que tocar mas em vão. Os nossos pés estão feridos e cansados. A travessia está sendo extremamente dolorosa, um mar vermelho se estende sobre 300.000 famílias ao tempo em que são construídos bezerros de ouro para manter a ganância dos poderosos ao invés de leitos hospitalares que garantam a assistência mínima à população. Enquanto isso o povo vai morrendo sem ar, “o irmão sem irmã, o filho sem pai, a mãe sem avó…sem lugar pra ficar”, lugar onde possa ser velado, pranteado, deixando os seus na solidão da dupla ausência. Uma névoa se estende e se adensa à nossa frente. Nessa páscoa estão sendo servidos pães ázimos com ervas amargas. Estará ainda longe Canaã?