Inicio o Espaço Reflexão desta semana no meio de uma guerra. Encontro-me dentro de uma UTI acompanhando meu avô que na terça passada se acidentou em casa e fraturou o fêmur. Aqui ao lado o hospital São Rafael reservou uma ala somente para pacientes diagnosticados com coronavírus. É muita gente lutando para se manter viva. E aqueles que vêm para medicar e tratar estão no mesmo time, dos que combatem e são combatidos.

Vovô Júlio chegou na porta da casa da minha avó materna há 24 anos. Eu estava no auge da minha rebeldia, aos 13 anos. Trancava-me no quarto e dele só saía para a escola ou para me alimentar. Aquele sotaque meio catalão e meio português, típico dos que nasceram na Galícia/Espanha, falava alto e muito intensamente. 

Uma contradição para alguém que estava buscando se isolar. Foi assim que eu o conheci, achando-o demasiadamente falante, expressivo e inteligente. Ele sempre reservava uma pergunta difícil para mim, da qual eu não poderia responder e sim, me restava martelar por dias ou semanas, até chegar numa definição ou conciliação. 

O fato é que nesta existência eu fui adotada pelos meus avós: Celuta, mãe da minha mãe. E Júlio, pai do meu pai. Não teve acordos sobre isso, visto que meus pais estão vivos e seguem as suas vidas. Ao longo do tempo eu entendi que as coisas não se encaixam em modelos culturais impostos, mas sim como nós sentimos.

Seu sangue, já dizia um velho ditado, até pernilongo tem. Família é quem nos respeita. E no meu “Mundo de Sofia”, assim como no livro, tem espaço e liberdade para nomear como primos, irmãos e pais os que se colocam com tais papeis. Quem demarca os territórios e os delimitam em países? Isso é invenção humana, bem como suas políticas e culturas.

A geografia é livre. Não se pode dizer para uma montanha ser mar e vice-versa, não são obras de joguete. Então a minha vida se dá como uma geografia. Mamãe se acidentou também naquele ano em que meu pai e meu avô bateram à minha porta. 

Com um traumatismo craniano e poucas chances de sobrevivência, atravessávamos um labirinto escuro. Se recuperando no pós-operatório, aquele homem que eu sempre procurei chegou de repente. Ele pôs seu nome no meu, registrando em cartório sua autoria. Vovô Júlio veio surpreso na sequência e assumiu o posto.

Meus genitores estavam ocupados em trabalhar e cuidar dos seus interesses. Enquanto vovó me preparava as melhores refeições quando eu voltava da escola, vovô me ligava para saber como eu estava. Acidentes? Nunca foram. Tudo estava escrito como tinha de ser. Atenção e afeto não são coisas que se pode pedir de alguém. São atributos naturais e a gente se aninha, se alinha, com a verdade que sentimos.

Enquanto passo boletins diários da saúde do meu avô para a família, este filme se repete na minha mente. Vivendo diante das incertezas, me construí. Hoje sou eu que assumo o posto de quem serve, de quem está sendo útil, ofertando ainda mais atenção e afeto.

Se é uma matéria que o futuro nos reserva é a justiça. “Dai a César o que é de César”, recomendava nosso Mestre Jesus. Com início de Alzheimer, meu avô Júlio transita em devaneios e se impõe no seu tempo de lucidez. É uma presença marcante, não há como negar. Todos os profissionais de saúde que aqui se reversam para cuidar dele, saem do quarto aos risos aliviados pelas pressões de uma guerra hospitalar.

“Oi vô, como vai? – Escapando minha filha!; De quê? – Da morte.” E é assim que ele responde desde que saiu do seu país fugindo de guerras e veio parar na Bahia. Agora, traçamos um novo plano de fuga para sair do hospital, ainda mais astutos e rebeldes que de outrora. 

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